Livro 1: A criança surda e o desenvolvimento da linguagem (Livro Digital)

4.1.1 Utilização do português escrito pelos surdos

Como você viu, os usos do português escrito pelos surdos podem ser diversos. Isso acontece em função das diversas situações que podem ocorrer nos diferentes domínios de sua vida social. Esses domínios podem ser muito diversificados, contudo, com base no Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas (CONSELHO DA EUROPA, 2001), conseguimos distinguir os seguintes:

  • o domínio pessoal, que envolve a vida privada do surdo, centrado no lar, nas suas relações com a família e os amigos (surdos e ouvintes), bem como suas atividades mais individuais (assistir vídeos, filmes e séries, ler, navegar na Internet, interagir nas redes sociais etc.);
  • o domínio público, que se refere às interações sociais do cotidiano da pessoa surda (nos lugares públicos, no transporte público, nas lojas e supermercado, nos hospitais, nos restaurantes, nos cinemas etc.);
  • o domínio profissional, que está relacionado às atividades e as relações dos surdos no exercício de sua profissão; e
  • o domínio educacional, que diz respeito ao contexto de aprendizagem e formação em instituições de ensino (creches, escolas, associações, universidades, etc.).

Em cada um desses domínios, as situações de uso do português escrito pelos surdos são moldadas pelos lugares, pelas instituições, pelas pessoas, pelos objetos, pelos textos, pelos temas e subtemas de comunicação e pelos acontecimentos característicos do domínio em questão.

Além disso, nessas situações, de acordo com a necessidade, a pessoa surda pode ou precisará realizar as seguintes atividades comunicativas por meio do português escrito:

  1. Recepção, em que o surdo lê e compreende textos escritos diversos produzidos por um ou vários escritores. Esse tipo de atividade comunicativa envolve a leitura para se orientar, para se informar, para seguir instruções, por prazer, a assistência de vídeos, filmes e séries legendados etc.;
  2. Produção, em que o surdo produz textos escritos para um ou vários leitores. Esse tipo de atividade comunicativa inclui o preenchimento de formulários, a criação de contas nas redes sociais, a escrita de e-mail, a escrita resumos, artigos e relatórios, entre outras;
  3. Interação escrita online que, atualmente, desempenha um papel central na comunicação em português escrito realizada pelos surdos em ambientes digitais (com os ouvintes e com outros surdos). Esse tipo de atividade comunicativa implica, pelo menos, duas pessoas cuja produção e recepção se alternam e o surdo precisa ser capaz de prever o fim da mensagem de seu interlocutor, a fim de preparar sua resposta (por isso, aprender a interagir envolve mais do que as atividades de recepção e produção); e
  4. Mediação sinalizada em que o surdo não precisa expressar seu pensamento, mas desempenhar o papel de intermediário entre textos escritos em português e interlocutores surdos que, por alguma razão, não são capazes de compreendê-los diretamente. Para Cruz (2023), esse tipo de atividade comunicativa envolve uma mediação interlinguística, intermodal e intersemiótica, realizada para a transmissão de uma informação em português escrito para a Libras (em ambientes formais ou informais), por meio de um tipo de tradução ou interpretação não formal.

NA PRÁTICA!

  • Para deixar mais claro essas noções de domínio e de situações de uso do português escrito pelos surdos, bem como a de atividade comunicativa, faça o seguinte exercício mental:
  • Imagine um estudante surdo que precisa tomar um ônibus para ir de sua casa ao IFSC Palhoça Bilíngue.
  • Agora, reflita sobre as atividades comunicativas nas quais ele precisará fazer uso do português escrito para realizar essa tarefa com sucesso. Para isso, as questões abaixo poderão lhe ajudar:
    1. Em qual domínio esta situação se inscreve?
    2. Nesse domínio, em quais locais/espaços o surdo necessitará utilizar (ou lhe será exigido) o português escrito?
    3. Nesses locais/espaços, quais temas e subtemas compõem os textos que o surdo necessitará ler ou que lhe será exigido que leia?
    4. Em resumo, na tarefa de se deslocar por meio do transporte público, o surdo precisará do português escrito para fazer o quê?

Você já tinha parado para pensar o quanto o português escrito é necessário para o deslocamento no transporte público? Você já imaginou como seria a realização dessa tarefa se você não soubesse ler?

Em face desses novos sentidos reais de uso do português escrito na vida social da pessoa surda, o processo de apropriação de sua segunda língua precisa propiciar a compreensão de que o português escrito também é um meio de comunicação e, para tanto, o conhecimento das diferentes funções da escrita no seu cotidiano, as quais, você já viu aqui, extrapolam os muros da escola. Diante disso, estamos cada vez mais convencidos de que o processo de apropriação de segunda língua pelos surdos continua fora da sala de aula. Essa questão nos encaminha à uma breve (re)discussão acerca das noções de “aquisição” e de “aprendizagem”.

VOCÊ SABIA?

O Common European Framework of Reference for Languages, mais conhecido pela sigla CEFR, é o Quadro Europeu Comum de Referência para Línguas (QECR).

É um documento de referência para o ensino/aprendizagem de línguas, que descreve o que os aprendentes devem aprender para serem capazes de utilizar a língua para se comunicarem. Também define os níveis de competência que permitem ao professor verificar o progresso da aprendizagem do aluno.

O QECR se popularizou no mundo todo e, aqui no Brasil, ela já está sendo adaptado e adotado como referência para a elaboração de aulas, programas e cursos de línguas para o público surdo e de língua de sinais para o público ouvinte.

Conheça e consulte o Quadro Europeu Comum de Referências para as Línguas (QECR), acessando o link abaixo:

Quadro Europeu comum de referência para as línguas