Livro 1: A criança surda e o desenvolvimento da linguagem (Livro Digital)

4.2 Aquisição versus Aprendizagem: o processo de apropriação de uma segunda língua

Você conhece a distinção entre “aquisição” e “aprendizagem” no processo de apropriação de uma segunda língua?

Para Krashen (1981), aquisição e aprendizagem são processos opostos. A aquisição, segundo o autor, seria um processo natural, implícito, inconsciente, cujo foco residiria no sentido; já a aprendizagem seria um processo artificial, explícito, consciente com o foco na forma. Diante disso, Quadros (2008) considera que a apropriação da segunda língua pelos surdos parece ser possível apenas por meio de um processo de aprendizagem de forma sistemática, necessitando de ensino formal.

Embora o processo de apropriação do português escrito fique mais evidente quando a criança surda entra na escola, vale você se perguntar:

Será que os surdos só são capazes de se apropriar do português escrito no ambiente formal de ensino, isto é, no contexto da sala de aula? Será que nesses espaços não há, também, aquisição? Será que não há aprendizagem e aquisição do português escrito pelos surdos fora da sala de aula?

Na verdade, atualmente, nós compreendemos que os processos de aquisição e de aprendizagem se articulam para a apropriação de uma segunda língua e que nada poderia justificar tal dicotomia (PENDANX, 1998). Em outras palavras, está claro que não existe aprendizagem sem aquisição, da mesma forma que não há aquisição sem aprendizagem. Veja a explicação de Michèle Pendanx acerca da articulação desses dois processos:

“[...] não há aprendizagem que não resulte de um certo grau de aquisição, e esta pressupõe um determinado processo de aprendizagem, do qual ela é o resultado. Nesse caso, a aprendizagem seria considerada como o tratamento do material linguageiro (seja ele imposto do exterior – na situação de ensino – ou seja ele realizado no âmbito de uma autoaprendizagem mais ou menos orientada), e a aquisição considerada como aquilo que é automatizado e interiorizado, e que resulta de operações conscientes e não conscientes do tratamento linguageiro”

(PENDANX, 1998, p. 59)

Em nossa prática de ensino de português escrito como segunda língua para surdos, temos coletado bastante evidências da articulação entre aquisição e aprendizagem. Na própria sala de aula, nós percebemos “aprendizagens” que não foram ensinadas aos aprendentes surdos. Por exemplo, alguns aprendentes surdos constituem bancos de palavras e de frases no celular - para consultar e empregá-las em situações de comunicação reais em seu cotidiano tanto na sala de aula, quanto fora dela.

Essa estratégia de apropriação não foi apresentada ou ensinada pelo professor em sala de aula e o conteúdo desses bancos não é definido pelas aulas, mas pela percepção do aprendente surdo de que em determinada situação real de comunicação por meio do português escrito, ele já precisou lançar mão de palavras e/ou frases de que não lembrava ou não conhecia, e então, ou ele antecipa futuros usos ou, ainda, ele percebe que se já usou e funcionou, pode estocar para reutilizar.

Há também casos de aprendentes surdos que diante de uma palavra nova (para eles), eles param e fazem a soletração manual para memorizar o novo vocábulo (que não era objeto da aprendizagem da aula) ou de aprendentes surdos que chegam para as aulas solicitando a definição de determinada palavra lida no instagram, no facebook ou nas legendas no story do WhatsApp.

Há também aquisições que acontecem na interação com os seus pares surdos durante as aulas de segunda língua.

Esses exemplos definem um claro processo de autoaprendizagem desenvolvido de forma autônoma pelos aprendentes surdos tanto em ambientes formais quanto não formais de ensino/aprendizagem do português escrito.

Perceba, a partir dos exemplos apresentados, que a sala de aula, ambiente formal de ensino/aprendizagem, pode ser um lugar potencial de aquisição do português escrito como segunda língua. Diante disso, preferimos usar o termo “apropriação” em vez de “aquisição” ou “aprendizagem” do português escrito pelos surdos, pois, nos unimos à Castellotti (2001) para definir “apropriação” como um termo genérico que engloba tanto o processo de aquisição quanto o de aprendizagem de línguas a partir de uma perspectiva não apenas linguística, mas também social, psicológica e ideológica.

Assim, para nós, a “apropriação de segunda língua pelos surdos” designa

o processo pelo qual os surdos desenvolvem os conhecimentos, os saberes, as habilidades e as competências necessárias para o uso do português escrito nos diferentes domínios de sua vida social, por meio de operações conscientes e não conscientes, em ambientes formais e não formais de ensino/aprendizagem.

E como acontece a apropriação da escrita pelos sujeitos surdos? Quais as especificidades envolvidas nesse processo? No segundo módulo deste curso, você vai aprender sobre as características inerentes ao ensino/aprendizagem do Português escrito como segunda língua para surdos.