Livro 2 - Alfabetização e letramento de crianças surdas (Livro Digital)

3.1 O processo inicial de apropriação da escrita por crianças surdas

Como você já deve ter observado, o processo de apropriação da escrita por crianças surdas difere das crianças ouvintes, especialmente em razão das línguas envolvidas. Para exemplificar algumas singularidades que podem ser observadas ao longo do desenvolvimento da escrita da criança surda, apresentamos um estudo realizado por Renata Peixoto, com 15 crianças surdas, de 4 a 11 anos de idade, matriculadas entre a educação infantil e o 2º ano do Ensino Fundamental de uma escola bilíngue de Recife. Peixoto (2006) identificou as características elencadas abaixo (figura 11) com destaque para o uso dos parâmetros fonológicos da língua de sinais e a representação dos aspectos viso-espaciais na organização da escrita.

Figura 11 - Características do processo inicial de apropriação do Português como segunda língua por crianças surdas

Fonte: Elaborado pelos autores

 

1. Desenho: assim como as crianças ouvintes, em um primeiro momento, os surdos também utilizam o desenho para representar a realidade. É uma etapa onde ainda não há um domínio do sistema alfabético e um entendimento pleno acerca da escrita como forma de representação da língua. De acordo com Peixoto (2006), o desenho é uma forma confortável para os escritores iniciantes porque possibilita o registro daquilo que, pela escrita, ainda não conseguem transmitir.

Figura 12 - Desenho

Fonte: Peixoto (2006, p. 2017)

 

2. Representação do sinal por meio de desenho: uma das características bem peculiares em relação às primeiras produções escritas das crianças surdas foi o registro visual do sinal (desenho). Peixoto (2006) destaca que essa é uma estratégia exclusiva dos surdos, em razão da modalidade visual/espacial da língua de sinais, a qual permite a representação figurativa da sua língua. Esses dados demonstram que as crianças surdas começam a transformar a escrita em uma representação da linguagem, passo fundamental para o processo de apropriação do Português escrito.

Figura 13 - Escrita com o desenho do sinal de A.D. e M.J., alfabetização

Fonte: Peixoto (2006, p. 218)

 

3. Representação da configuração de mão: uma outra característica específica das crianças surdas em processo de alfabetização é a representação da configuração de mão nas produções escritas. Esses dados são fundamentais porque comprovam a relação intrínseca entre a língua de sinais e o processo de apropriação do Português escrito pelos surdos. Dessa forma, é possível perceber que assim como os ouvintes são influenciados pelo Português oral - sua primeira língua - as crianças surdas também buscam referência em sua L1 para realizar seus primeiros registros.

A configuração de mão é um dos parâmetros que formam o sinal e se refere à forma como a mão é posicionada para a produção do sinal. Em Língua Brasileira de Sinais, temos 79 configurações de mãos, conforme observado na imagem abaixo:

Na figura 14, podemos observar um exemplo de como as crianças registram a configuração de mão dos sinais na escrita do Português. Por exemplo, o sinal de “memória” é realizado com a configuração de mão em “M” e as crianças iniciam a palavra com M, o que está de acordo com a palavra em Português. O segundo exemplo representa a tentativa de escrita da palavra “MAU” e, como você pode observar, as crianças iniciaram a palavra com a letra B. Você saberia explicar o porquê dessa escolha? Assim como no primeiro caso, a criança se apoia na configuração de mão do sinal - nesse caso é com a mão em “B” - e utiliza na escrita da palavra.

Figura 14 - Representação da escrita conforme a configuração de mão

Fonte: adaptado de Peixoto (2006, p. 223)

4. Representação do movimento do sinal: um outro parâmetro da Língua Brasileira de Sinais é o movimento, o qual se refere à forma como as mãos se movimentam na produção do sinal. Peixoto (2006) traz mais uma particularidade no registro das crianças surdas, o qual também ratifica a relação intrínseca com a língua de sinais. Diante da apresentação do sinal “Iguatemi” - desconhecido para as crianças - houve uma representação da configuração do sinal em “I” juntamente com um registro do movimento das mãos, o qual a pesquisadora chamou de “tamborilar dos dedos”.

Figura 15 - Representação da escrita conforme o movimento do sinal

Fonte: Peixoto (2006, p.225)

5. Representação do tipo de sinal: além da relação com a configuração de mão, é possível observar também a influência do tipo de sinal (simples - composto) na produção escrita do aluno surdo. Peixoto (2006) mostra que as crianças usaram duas palavras para se referir ao sinal de “consertar”, cuja produção em língua de sinais é feita por dois sinais.

Figura 16 - Produções escritas a partir de sinais compostos

Fonte: Peixoto (2006, p. 222)

Quando falamos em alfabetização de crianças surdas, sempre destacamos o papel da língua de sinais nesse processo. Você já tinha visto como essa relação acontece?

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Você já trabalhou com alfabetização de crianças surdas? Ou já acompanhou, de alguma forma, esse processo?

Se já teve essa vivência, compartilhe conosco a sua experiência.

Se ainda não teve essa experiência, conte para nós quais são os maiores desafios que você percebe neste processo.

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As especificidades identificadas nos estudos de Peixoto (2006) comprovam o papel da língua de sinais na apropriação do Português escrito e mostram que é possível desenvolver a escrita sem passar pela fonetização, sem que o ponto de partida seja a oralidade. Mesmo para um ouvinte falante do Português como primeira língua, percebemos desafios na alfabetização, já que para aprender a escrever não basta considerar somente a oralidade, mas compreender que a representação escrita é um processo complexo e abstrato.

Você deve estar se perguntando sobre a relação dos surdos com as palavras, haja vista a inexistência da relação entre letra e som. Como você viu, em um primeiro momento, há influência da língua de sinais no processo de apropriação da escrita para, em seguida, evoluir para uma representação do Português. Entretanto, diferente dos ouvintes, os surdos processam as palavras como um todo, as reconhecem em sua forma ortográfica para assim compor o seu repertório lexical. É muito comum, inclusive entre jovens e adultos surdos, observarmos esse processo quando diante de algumas palavras desconhecidas remetem a outras palavras familiares. Por exemplo:

Você viu os exemplos acima? Percebeu que algumas partes da palavra estão em destaque? Aquelas partes grifadas são formas de ilustrar como os surdos lêem alguns vocábulos desconhecidos. É normal que eles busquem em seu repertório lexical palavras que já conhecem e, nessa ação, atribuam significados a partes da palavra que lhes são familiares.

Por exemplo: ao ver a palavra CASAMENTO, o aluno realiza o sinal de CASA (residência), por já conhecer a palavra CASA. Em casos assim, o professor precisa fazer a mediação e explicar que ali temos uma nova palavra, seu sinal e contextos de uso.

Almeida (2000 apud Pereira, 2009, p.24 ) também identificou tentativas de um sujeito surdo ao conferir significados a algumas palavras, conforme mostra o exemplo abaixo:

 

Exemplos de um surdo conferindo significado às palavras

Nas palavras “cara” e “fazendo”, ele perguntou se era igual a “caro” e “fazenda”, em “identidade”, fez o sinal de “RG” e diante da palavra "expressão", soletrou e fez sinal de pressão, pensou que se referisse a caminhão por ser pesado e fez sinal de ex-namorada.

Finalmente, para “significado” perguntou se era igual a signo.

Estes exemplos revelam um movimento do sujeito de buscar no seu conhecimento prévio pistas que o ajudem a atribuir sentido às palavras lidas. Na tentativa de atribuir significado à palavra “expressão” o sujeito parece fazer uma análise da palavra, dividindo em “ex” e “pressão” e vai buscar em seu conhecimento prévio um contexto em que estas palavras façam sentido.

Fonte: adaptado de Pereira (2009)

Lembra da discussão anterior acerca dos processos cognitivos da leitura pela via fonológica e pela via lexical? Como você estudou, esse processo de reconhecimento da palavra como um todo é denominado via/rota lexical, sendo uma das formas de leitura. Na rota lexical acontece um processamento visual direto de palavras que já foram lidas e, por isso, são reconhecidas. Diferente da rota fonológica, onde as palavras são identificadas a partir da sua estrutura sonora por meio de uma relação entre os sons e os grafemas, na rota lexical há um reconhecimento visual da palavra.

A partir do exemplo citado por Fernandes (2006, p.9), você pode experienciar como se dá a leitura a partir da rota lexical.

Conseguiu compreender o texto? Foi possível reconhecer as palavras mesmo com as letras invertidas? Acreditamos que sim. É assim que se dá a identificação da palavra com base na rota lexical, a qual é cada vez mais utilizada por pessoas fluentes de uma língua. Para os surdos, é assim que acontece a leitura do Português, já que a língua escrita é percebida visualmente, ou seja, a palavra é vista como um todo.

No caso dos surdos, a leitura não ocorrerá recorrendo às relações letra-som (rota fonológica). Desde os primeiros contatos com a escrita, as palavras serão processadas mentalmente como um todo, sendo reconhecidas em sua forma ortográfica (denominada rota lexical), serão “fotografadas” e memorizadas no dicionário mental se a elas corresponder alguma significação.

(FERNANDES, 2006, p. 9)

Como você pode ver na citação acima, a autora ressalta que as palavras serão inseridas no dicionário mental se “a elas corresponder alguma significação”, por esse motivo é tão importante que a alfabetização ocorra de maneira contextualizada, significativa e de maneira visual.