Livro 3 - Práticas de alfabetização e letramento para crianças surdas (Livro Digital)

2. Unidades Didáticas como estratégia para alfabetização e letramento de crianças surdas

Considerando que o processo de alfabetização e letramento para alunos surdos em língua portuguesa é um processo que envolve duas línguas de modalidades diferentes e que o aluno surdo constrói sentido a partir de uma experiência de mundo visual, assumimos que a forma mais coerente de explorarmos esse processo é a partir de unidades didáticas.

No ensino contemporâneo de segundas línguas e línguas estrangeiras, uma “Unidade Didática” pode ser definida como um conjunto de atividades de aprendizagem articuladas de maneira coerente em função de um objetivo de aprendizagem comunicativo, organizado em uma sucessão de “fases” ou “etapas” ligadas entre si por uma hipótese cognitiva da aprendizagem de línguas (compreensão/identificação - memorização - produção), cujo percurso visa a conduzir o aprendente à descoberta de novos elementos linguageiros, à sua apropriação e fixação (Cuq, 2003; Courtillon, 2003; Lemeunier, 2006; Laurens, 2012).

Autores como Laurens (2012), que pesquisam o ensino da língua materna e de uma segunda língua, costumam utilizar o termo sequência didática (SD) para o planejamento das atividades de ensino da primeira língua e o termo unidade didática (UD) para o planejamento do ensino da segunda língua. Nesse contexto, as unidades didáticas são atividades planejadas de forma sequenciada, que organizam e orientam a ação pedagógica a fim de que os aprendentes obtenham a apropriação linguística de uma segunda língua e desenvolvam a capacidade de se comunicar nessa língua.

A unidade didática organiza as diferentes atividades da aula, de forma coerente, do ponto de vista das estratégias de ensino e dos processos de aprendizagem de uma segunda língua. Essa sequência de atividades segue uma lógica comunicativa e cognitiva, que vai desde atividades de compreensão até atividades de expressão, incluindo o trabalho da língua, no contexto de uma determinada situação ou tema (Laurens, 2003).

Veja a seguir um exemplo prático de como organizar o planejamento de uma unidade didática.

Conheça essa experiência!

Em uma escola de surdos, uma professora do 6º ano queria apresentar algumas expressões idiomáticas da cultura brasileira para os alunos, para isso ela utilizou a seguinte estratégia:

  • Em um primeiro momento, a professora apresentou o vídeo da TV INES com o conto A onça e o gato.

Assista ao conto completo em:

  • Em seguida, a professora conduziu uma discussão em Libras sobre a história apresentada.

Nessa atividade, a professora explorou a interpretação dos alunos sobre o conto A onça e o gato, verificando se os alunos tinham entendido quem eram os personagens da história, onde a história aconteceu, quando, o que aconteceu especificamente, se a onça e o gato eram amigos no começo da história, se eram no fim da história, se o pedido de perdão da onça foi verdadeiro e por quê, se a intenção do gato em ensinar os pulos foi verdadeira e por quê, qual a diferença entre os pulos que o gato ensinou para a onça e o pulo que ela não ensinou, por que o gato estava desconfiando da onça e se estava certa em desconfiar, etc.

  • A partir da interpretação da história desenvolvida em Libras, tanto em sua recepção (primeiro momento: assistir ao vídeo) quanto em sua produção (segundo momento: discussão), a professora apresentou o texto da história para os alunos lerem. Para isso, copiou toda a legenda do vídeo.

A primeira leitura foi proposta de forma coletiva e colaborativa entre os alunos sem o auxílio da professora. Os alunos deveriam tentar ler a partir das palavras que já conheciam e do conhecimento prévio que haviam adquirido ao assistir ao vídeo e discuti-lo. Durante toda essa atividade, a professora ficou atenta às hipóteses levantadas pelos alunos e a forma como eles argumentavam uns com os outros, tendo assim um diagnóstico e um mapeamento de quais alunos tinham se apropriado do texto e quais alunos ainda se sentiam inseguros para manifestar alguma hipótese sobre a língua portuguesa.

A segunda leitura foi desenvolvida juntamente com a professora e os alunos puderam, neste momento, confirmar ou descartar suas hipóteses levantadas na primeira leitura.

  • A professora solicitou que os alunos realizassem uma terceira leitura que foi gravada com o celular da própria professora.

Essa gravação foi usada para os alunos se observarem no processo tradutório de leitura e para planejar outras formas de interpretação da história que se distanciam do português sinalizado.

  • A professora realizou ainda a comparação entre as interpretações dos próprios alunos e do vídeo da TV INES.

Durante a atividade de comparação, os alunos surdos puderam observar as escolhas linguísticas feitas por eles e por um adulto.

  • A partir da compreensão do conto A onça e o gato e dos exercícios e práticas de leitura, a professora realizou outras atividades relacionadas ao processamento linguístico da língua portuguesa.

A partir das discussões desenvolvidas na comparação das interpretações, a professora pontuou aspectos relacionados à análise linguística da língua portuguesa como a concordância nominal e a semântica de grupos de palavras, como das próprias expressões “pulo do gato” e “amigo da onça”. Além de explorar essas expressões em outros contextos, como a brincadeira “amigo da onça” e a brincadeira “cama de gato” que explora as estratégias e possibilidades corporais dos alunos.

  • Por fim, a professora propôs a produção escrita de um mapa mental e de verbetes para a produção de um dicionário das expressões idiomáticas em que os alunos escrevessem os significados denotativo e conotativo das expressões

A professora ofertou papéis almaço (com pauta) para que os alunos realizassem as produções e orientou que o verbete e o mapa mental comporiam um mesmo material que foi deixado à disposição dos alunos para consultas na sala de aula. Esse mesmo material foi complementado depois em outras atividades e, ao final do ano, os alunos levaram seu livro de consultas para casa.

Neste exemplo, para que os alunos surdos compreendessem as expressões idiomáticas da cultura brasileira “amigo da onça”, “o pulo do gato” e “confiar desconfiando”, a professora não utilizou apenas a forma expositiva, explicando o significado conotativo dessas expressões. Como o uso não literal dessas expressões provavelmente não é comum para esses sujeitos, se o acesso ao significado tivesse sido através apenas da explicação da professora, certamente, com algum tempo esses significados se perderiam. Por isso, para propor uma prática mais significativa, a professora contextualizou as três expressões idiomáticas a partir de um conto apresentado em Libras em que o sentido conotativo fazia sentido e ampliando, a partir disso, para outros contextos de uso.

Logo, podemos visualizar a sequência proposta na unidade didática: