Livro 1: A criança surda e o desenvolvimento da linguagem (Livro Digital)

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Course: Repositório Curso Alfabetização e Letramento de Crianças Surdas
Book: Livro 1: A criança surda e o desenvolvimento da linguagem (Livro Digital)
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Date: Wednesday, 17 July 2024, 4:47 PM

MÓDULO 1: A criança surda e o desenvolvimento da linguagem

1. Construção e desenvolvimento da linguagem

Você já se perguntou sobre como ocorreu o seu desenvolvimento da linguagem? Quando começou a ter interações por intermédio de sons e palavras ou gestos e sinais?

Talvez você não lembre exatamente desse momento, por conta da naturalidade que isso ocorre na vida de uma criança. Quando compartilhamos a língua da nossa família, é comum que não paremos para pensar sobre isso. Aqui no Brasil, a maioria das famílias é falante de português e têm interações com seus bebês já na gestação. Podemos chamar esse processo pelo qual os bebês vão se apropriando da língua falada em seu entorno de aquisição da linguagem.

E o que difere a linguagem humana de outras formas de comunicação?

De acordo com Grolla e Silva (2014), os animais também possuem sistemas de comunicação que os permitem interagir com seus pares. Em muitos casos, são formas sofisticadas de comunicação que envolvem sons, danças e outros aspectos que são utilizados com fins comunicativos. Segundo as autoras, os animais utilizam a linguagem “apenas” para comunicar alguma informação, enquanto nós, humanos, podemos usar a linguagem para diferentes propósitos, seja para julgar, convencer, ameaçar, discutir, planejar, entre outros.

A flexibilidade e a versatilidade caracterizam a linguagem humana, isto é, essa capacidade que temos de usar a língua para falar de planos, sentimentos, assuntos referentes ao passado, futuro e presente (Lyons, 1987 apud Grolla e Silva, 2014).

As características acima mencionadas independem da língua a ser desenvolvida, sejam línguas orais ou de sinais. Além disso, a aquisição da linguagem apresenta a uniformidade e a universalidade como particularidades uma vez que, em qualquer lugar do mundo, as crianças passam por estágios semelhantes e desenvolvem uma língua em um curto período de tempo (cerca de cinco anos).

É importante ressaltar que o processo de aquisição da linguagem seguirá essas etapas, independente do lugar e da língua, sempre que a criança tiver acesso à língua, ou seja, ao input linguístico.

O input linguístico são os dados primários da língua (Primary Language Data) e, é com base nesses dados que a criança formula uma série de hipóteses concernentes à gramática da sua língua, até chegar a sua última forma, a gramática do adulto (Neves, 2013).

Você sabia que é justamente o input linguístico que vai definir quais línguas a criança vai falar/sinalizar e até como vai adquirir línguas de diferentes modalidades? Ao ter contato com uma língua oral/auditiva (como o Português) e uma língua visual/espacial (como a Libras), a criança poderá desenvolver o que chamamos de bilinguismo bimodal.

As crianças ouvintes filhas de pais surdos, as chamadas Codas (Children of deaf adults) possuem contato com línguas de modalidades distintas desde o nascimento e, naturalmente, desenvolvem as duas línguas de forma concomitante. Estudos sobre o bilinguismo bimodal têm mostrado que o contato com as duas línguas não prejudica o desenvolvimento linguístico das crianças, uma vez que elas passam pelos mesmos estágios de aquisição da linguagem com as especificidades relacionadas a cada modalidade.

Tais aspectos são importantes e mostram que o acesso à língua de sinais não atrapalha as crianças surdas que são submetidas ao tratamento fonoaudiológico para desenvolvimento da oralidade, ou seja, a aquisição da língua de sinais pode ocorrer simultaneamente ao processo de oralização, se for um desejo da família e da criança.

Vale ressaltar que, neste momento, estamos falando sobre a aquisição da língua oral e da língua sinalizada, processo que acontece de maneira natural, e é utilizada para a comunicação e não sobre o processo de apropriação da escrita da língua portuguesa. O processo de aprendizagem da escrita veremos um pouco mais adiante.

Antes de falarmos especificamente de aquisição da língua de sinais pela criança surda, é interessante entendermos que diferentes teorias explicam essa apropriação da língua de maneiras diferentes.

Para saber mais!

Se você quiser aprender um pouco mais sobre bilinguismo bimodal, sugerimos a leitura da obra “Língua de Herança: língua brasileira de sinais”, de Ronice Müller de Quadros.

2. Diferentes perspectivas de aquisição da linguagem

Os estudos referentes a aquisição da linguagem têm ganhado destaque no contexto educacional nas últimas décadas e buscam explicar como o ser humano se apropria da linguagem a partir do nascimento.

imagem ilustrativa de diferentes perspectivas de aquisição da linguagem

Assim, é interessante que você conheça algumas teorias voltadas para a aquisição da linguagem e que são utilizadas na educação.

A seguir vamos apresentar 4 dessas teorias:

  • Abordagem Behaviorista ou Comportamentalista

  • Epistemologia genética

  • Perspectiva histórico-cultural

  • Abordagem gerativista

2.1 Abordagem Behaviorista ou Comportamentalista

A abordagem comportamentalista tem como foco o comportamento animal e, por consequência, o comportamento humano e como ele se molda com as interferências do ambiente. Seus principais representantes são Ivan Pavlov, John Watson e Burrhus Skinner.

Imagem de Ivan Pavlov

Ivan Pavlov

Imagem de John Watson

John Watson

Imagem de Burrhus Skinner

Burrhus Skinner

Nessa perspectiva, a linguagem é um comportamento, assim como outros que desenvolvemos por meio de estímulos, reforços negativos e positivos, imitação e associação. A partir dos estímulos do meio, vamos construindo a linguagem.

Imagem de um pai e um filho

Para você ter uma ideia, a própria presença de um adulto ou alguém mais experiente pode ser um estímulo para que a criança peça algo. À medida que a criança vai imitando os sons que ouve, ela recebe reforços positivos caso esses sons estejam corretos ou façam sentido.

Placas que contenham palavras também são estímulos quando as lemos em voz alta para a criança.

Quando a criança pequena repete, do seu jeito, tudo que outra pessoa falou, também é uma das formas de adquirir a linguagem.

Essa é a perspectiva da teoria Behaviorista ou comportamentalista de aquisição da linguagem.

Vamos conhecer como a teoria da Epistemologia Genética explica esse processo?

2.2 A Epistemologia Genética

A teoria da Epistemologia Genética foi formulada por Jean Piaget. Assim como a teoria Behaviorista, não tinha como foco a aquisição da linguagem, mas como os organismos se adaptam ao meio, como nos desenvolvemos e aprendemos.

Imagem de Jean Piaget

Jean Piaget

Para Piaget, a linguagem é constituída a partir do encontro do orgânico (humano) com a vida social, quando a criança começa a organizar o mundo com as imagens mentais. A língua então, vai se constituindo a partir das ações e experiências que a criança constrói com os objetos à sua volta.

Infográfico: O Encontro do Orgânico com o meio Fonte: Elaborado pelos autores

Mas como a criança constrói a língua a partir de sua ação sobre os objetos? Você já deve ter visto um bebê de meses de vida experimentando algum objeto: o bebê morde, joga, bate contra o chão, agita no ar, faz tudo o que a coordenação de seus movimentos permitir. Com o tempo, o bebê vai organizando suas categorias mentais e percebendo o que pode fazer com cada objeto.

A ordenação da frase (sintaxe) é assim organizada:

Imagem ilustrativa: Desenho de uma criança

Eu (criança sujeito da ação)

encaixo (verbo)

as argolas (objeto).

As noções espaço-temporais também são construídas na ação. O faz de conta e a elaboração de cenas, a distribuição do que acontece no espaço (ordenação) dá origem à noção de tempo.

Quando o bebê faz alguma coisa e algo acontece em seguida, como jogar objetos no chão de maneira consciente para que alguém pegue, ou quando ele deixa de brincar lá fora porque choveu e o chão ficou molhado, ele vai aprendendo a relação de causa e efeito.

Essa é a perspectiva da teoria da Epistemologia Genética de aquisição da linguagem. Agora vamos conhecer a explicação dada pela perspectiva histórico-cultural?

2.3 Perspectiva Histórico-cultural

A teoria Histórico-cultural foi elaborada pelo russo Lev Vigotski. Ele defendia que nós nos constituímos, nos tornamos mais humanos, na interação com o outro a partir da apropriação e reelaboração dos conhecimentos construídos histórica e culturalmente.

Imagem de Lev Vigotski

Lev Vigotski

Veja na citação abaixo mais detalhes dessa ideia defendida por Vigotski:

O homem não se serve apenas da experiência herdada fisicamente. Toda nossa vida, o trabalho, o comportamento baseiam-se na utilização muito ampla da experiência das gerações anteriores, ou seja, de uma experiência que não se transmite de pais para filhos através do nascimento. Convencionaremos chamá-la de experiência histórica (Vigotski, 2004, p. 64).

Para Vigotski, a ação do ser humano sobre o mundo ocorre mediada por questões físicas e psíquicas, ação essa que é a força motriz do desenvolvimento.

Infográfico sobre mediação Fonte: Elaborado pelos autores

Na imagem acima você pode ver que a mediação psíquica acontece por meio da linguagem! Isso quer dizer que a apropriação da cultura ocorre pela interação social por meio de uma língua em comum. A comunicação, seja ela em uma língua oral (português) ou em uma língua visual (Libras), organiza o pensamento e ajuda a criança a internalizar e a se apropriar do conhecimento externo. Com a fala a criança pode estabelecer novas relações no ambiente e uma nova organização do comportamento. Essas novas formas de organização desenvolvem as funções psicológicas superiores como memória, atenção focada, raciocínio lógico, pensamento, consciência, vontade, entre outras.

A linguagem vai sendo adquirida desde o nascimento por essa interação significativa entre o bebê e os adultos à sua volta. Entre 1 a 3 anos de idade, as crianças começam a explorar os objetos com mais afinco. Essa exploração é orientada pelos mais experientes por meio da linguagem! Vão sendo apresentados os nomes desses objetos, as suas funções e os seus significados.

Você sabia que esses objetos mencionados acima podem ser imateriais também? Sim! Como as histórias que são contadas ao longo do tempo.

Assim, podemos compreender, que nesta perspectiva, a aquisição da língua se dá pela interação efetiva da criança com sujeitos mais experientes no meio social.

Interessante esta perspectiva, não é mesmo?

Para finalizar, você estudará sobre a construção da linguagem na abordagem gerativista.

2.4 A abordagem Gerativista

A abordagem Gerativista foi elaborada pelo linguista e filósofo norte-americano Noam Chomsky, aproximadamente no final da década de 1950.

Imagem de Noam Chomsky

Noam Chomsky

A proposição chomskiana está pautada no inatismo e na ideia de que existe um dispositivo biológico independente para a linguagem, exclusivo da espécie humana, de caráter altamente criativo.

Esse dispositivo foi nomeado Gramática Universal.

Você sabe o que significa o termo inatismo ou inato? Bom, durante a concepção dessa abordagem, Chomsky se baseou em teorias de outros filósofos, um deles René Descartes, que defendia três tipos de ideias:

Infogrático três tipos de ideias Fonte: Elaborado pelos autores

Para a teoria inatista, ao nascer a criança já traz na herança genética as qualidades e capacidades básicas do ser humano.

Chomsky entendia que todas as pessoas, independente do lugar em que nasceram, possuem essa capacidade inata de desenvolver a linguagem, diferente de outros animais. Além disso, para Chomsky, a linguagem não é entendida como uma habilidade, conforme os behavioristas defendem, ela é diferente de tudo que se possa ensinar por condicionamento, não sendo, portanto, necessário que sejamos estimulados de maneira intencional para desenvolver a linguagem. Se somos humanos, temos condições de desenvolver a língua.

Todavia, a abordagem defende que esse dispositivo inato para a aquisição da linguagem só é ativado quando entramos em contato com a língua utilizada em nossa volta. A língua ou as línguas que são faladas ou sinalizadas pelas pessoas que nos rodeiam são denominadas input.

A criança adquire a língua sem nenhum tipo de esforço ou instrução explícita, mas simplesmente por estar exposta à língua. Fonte: Elaborado pelos autores

Para essa teoria a linguagem seria um conjunto de representações mentais. Além disso, Chomsky definia a língua de duas maneiras. Veja a imagem abaixo:

Infográfico Concepção de Linguagem Fonte:Elaborado pelos autores

Para Chomsky, a língua possui dois tipos de atributos que podem ser considerados: princípios ou parâmetros. Os princípios são comuns a todas as línguas, já os parâmetros variam! Podemos citar como exemplo as diferentes formas de organizar uma sentença em diferentes línguas.

Princípios e Parâmetros Fonte: Elaborado pelos autores

Além desses aspectos, o autor ainda defende que há um período da vida no qual nós estamos mais predispostos a desenvolver a língua. Esse período pode ser chamado de crítico ou sensível e inicia aos dois anos de idade seguindo até a puberdade.

Por influência de Lenneberg (1967), Chomsky incorporou à teoria Gerativista de aquisição da linguagem esse período crítico ou sensível e também a concepção biológica de linguagem, que entende que o desenvolvimento da linguagem acontece até o ser humano atingir certo nível de maturação física.

Essa abordagem Gerativista de aquisição da linguagem é defendida por autores que pesquisam sobre a aquisição da língua de sinais, dentre eles, a pesquisadora Ronice Quadros.

Agora que você conheceu algumas abordagens que explicam a aquisição da linguagem, vamos estudar sobre a aquisição da língua pela criança surda.

3. Aquisição da língua de sinais

Considerando as abordagens sobre aquisição da linguagem que você estudou até aqui, você já se questionou sobre:

Como acontece esse processo de aquisição da língua pela criança surda?

Antes de começarmos a dialogar sobre este assunto, assista ao vídeo abaixo:

Como você pode ver no vídeo acima, mãe e filha compartilham a Língua Brasileira de Sinais - Libras. Dessa maneira, Fiorella teve, desde bebê, acesso à língua visual. Sabemos que a maioria das crianças surdas nascem em famílias de ouvintes, que não conhecem a Libras e isso faz com que a aquisição da língua de sinais aconteça de maneira tardia pela criança.

Porém, tendo acesso a um input linguístico visual, as fases de aquisição da língua pela criança surda são as mesmas das crianças ouvintes. Isso corrobora com o que a abordagem Gerativista entende: todos temos um dispositivo inato para o desenvolvimento da linguagem que deve ser ativado pela língua que nos rodeia. E dialoga também com a perspectiva histórico-cultural de aquisição da linguagem, se compreendermos que a aquisição da língua, seja ela uma língua oral (português) ou uma língua visual (Libras) se dá pela interação social e pelas referências linguísticas que o adulto (sujeito mais experiente), compartilha com a criança (sujeito aprendiz).

As pesquisas que comprovam esse desenvolvimento linguístico das crianças surdas em estágios análogos aos ouvintes são recentes. No início da década de 1990, Petitto e Marentette (1991) mostraram a existência do balbucio em crianças surdas, indicando que esse fenômeno acontece com todos os bebês, independente da modalidade de língua a que estão expostos.

Na prática

Assista ao vídeo abaixo e veja como as referidas pesquisas identificaram essas produções. 

A partir disso, outros estudos foram surgindo, como os estudos de Quadros e Cruz (2011), que apontaram o desenvolvimento linguístico das crianças surdas em estágios análogos aos das crianças ouvintes.

Estágios de aquisição Fonte: Elaborado pelos autores

Na sequência, você entenderá melhor cada um desses estágios.

3.1 Estágios de aquisição da língua de sinais

São 4 os estágios de aquisição da linguagem apresentados por Quadros e Cruz (2011). Conheça, abaixo, cada um deles:

1 - Período pré-linguístico

Neste estágio de aquisição da linguagem, denominado período pré-linguístico

Do primeiro ao terceiro mês as crianças apresentam o que é chamado sorriso social, o choro já tem intenção comunicativa, há emissão de vocalizações e de produção manual. Estudos mostram que os bebês são sensíveis às estruturas das línguas naturais.

Do quarto ao nono mês inicia o balbucio (sons ou gestos) quando a criança começa a imitar as produções manuais produzidas pelas outras pessoas. Além disso, há o aparecimento das primeiras sílabas manuais. Por exemplo, quando a configuração de mão aberta no rosto pode significar “mãe” (Quadros e Cruz, 2011).

Você Sabia?

Você sabia que as crianças balbuciam independentemente das línguas às quais estejam expostas até o balbucio tornar-se mais estruturado?

A partir dos dez meses, as crianças começam a balbuciar somente os sons que ouvem ou visualizam. Elas começam a repetir sinais, com o intuito de formar as primeiras palavras. Da mesma forma que uma criança ouvinte fala “mama-papa”, as crianças surdas expostas à Libras desde cedo produzem essa repetição na língua de sinais.

Veja um exemplo desse processo no vídeo de um pai sinalizando em Libras para o bebê

É nesse período também que as crianças começam a mapear sons e significados e a ter uma percepção mais sofisticada das características da língua.

2 - Estágio de um sinal

O estágio de um sinal pode iniciar aos 12 meses e seguir até os 02 anos de idade. Como é uma fase bem inicial da linguagem, é comum que as crianças, mesmo as ouvintes, utilizem outras estratégias não verbais para conseguir estabelecer uma comunicação com as pessoas ao seu redor.

Por exemplo, nesse período, a apontação (apontar para um objeto), o olhar, o toque são formas usadas pelas crianças para indicar aquilo que ela deseja. É interessante destacar que, nessa idade, crianças ouvintes e surdas utilizam gestos para solicitar algo, mas independente disso, as crianças surdas com acesso à língua de sinais já produzem os sinais próprios da língua visual.

Uma característica do estágio de um sinal são as produções holofrásticas, onde uma palavra pode significar uma frase completa. Por exemplo, a criança surda pode fazer o sinal de ÁGUA e isso pode significar: QUERO ÁGUA, ESTÁ CHOVENDO, TOMAR BANHO, conforme o contexto em que está inserida e que envolva água.

Assista ao vídeo disponível no Canal “O diário de Fiorella”, no qual Fiorella dialoga com a mãe em língua de sinais e observe os recursos utilizados para a comunicação.

3 - Estágio das primeiras combinações

Geralmente, o estágio das primeiras combinações de sinais/palavras iniciam por volta dos dois anos de idade. É interessante mencionar que mesmo que a criança ainda não produza um grande número de combinações, ela é capaz de compreender as informações compartilhadas ao seu redor, isso porque a compreensão antecede a produção.

Quando falamos em primeiras combinações, estamos nos referindo à combinação de dois sinais, por exemplo: “QUERER BOLA”. As autoras Quadros e Cruz (2011) explicam que essas produções, mesmo que iniciais, já preconizam o uso da ordenação participação-verbo (EU QUERER) ou verbo-objeto (QUERER ÁGUA).

Ainda, segundo as pesquisadoras, essas manifestações demonstram a importância de adultos usuários da língua de sinais interagirem com a criança para que ela consiga interiorizar as regras da língua que está sendo exposta. Outros aspectos gramaticais, como concordância e sistema pronominal, ainda são inconsistentes nesse estágio. Por outro lado, o repertório lexical começa a expandir-se gradativamente e as crianças podem produzir de 50 a 400 palavras nessa faixa etária.

Lembra do vídeo que você assistiu no início deste capítulo? Da conversa entre a Fiorella e sua mãe? Nele é possível identificar esse estágio das primeiras combinações.

Se não recorda, assista novamente: 

4 - Estágio das múltiplas combinações

A partir dos 2 anos e meio e 3 anos, ocorre uma ampliação no vocabulário das crianças com cerca de 900 sinais, além da produção de frases curtas e um avanço no desenvolvimento da aquisição de aspectos linguísticos, como a utilização consistente de referentes presentes no discurso. Esse é o estágio das múltiplas combinações.

Com 3 anos e meio, o vocabulário da criança pode chegar a 1200 sinais. Nesse período, ainda é comum que consigam utilizar os referentes de forma consistente, além de produzirem as chamadas “supergeneralizações”, como as que acontecem em português quando as crianças falam “fazi” e “sabo” ao invés de “fiz” e “sei”.

Entre quatro e cinco anos, as crianças podem produzir cerca de 1900 sinais. Nessa fase, começam a contar narrativas mais complexas. Até os 07 anos de idade, espera-se que as crianças surdas tenham desenvolvido o sistema referencial da sintaxe da língua de sinais.

Por volta dessa idade as crianças já conseguem sinalizar fazendo referência a pessoas ausentes na conversa, porém, ainda é comum que não consigam marcar todos os referentes nos locais corretos. Isso pode ser chamado de empilhamento de referentes.

Como você sabe, a língua de sinais é visual e, portanto, utilizamos o espaço em nossa frente para estruturar a narrativa, assim, vamos alocando os lugares e as pessoas mencionados em determinados pontos que não devem se sobrepor.

Em seguida você pode acompanhar a sinalização de uma criança que ilustra o estágio das múltiplas combinações.

Na prática:

No vídeo, Florence está contando sobre a sua visita ao circo e utiliza a combinação de sinais próprias deste estágio

Você já conhecia as meninas surdas que aparecem no vídeo? Fiorella e Florença nasceram surdas em uma família de pais surdos. Elas são do Rio Grande do Sul e, desde os primeiros anos de vida possuem contato com a língua de sinais. Os pais delas compartilham muitos momentos incríveis no canal “O Diário de Fiorella”

Os vídeos publicados mostram o processo de aquisição da língua de sinais e a importância da interação com os pares surdo

3.1.1 Realidade linguística das crianças surdas

Agora que você já conhece as etapas de aquisição da linguagem, vamos refletir um pouco sobre a realidade linguística das crianças surdas, haja vista que grande parte não possui contato com a língua de sinais desde a mais tenra idade.

Socialize! 

Você já se perguntou sobre o que acontece com as crianças surdas que não têm acesso à língua de sinais? Será que elas passam pelos mesmos 4 estágios de aquisição da linguagem?

Compartilhe com os colegas suas ideias ou mesmo alguma experiência que você já teve sobre este assunto.

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Uma questão importante para refletirmos é sobre como os surdos se comunicam quando não estão imersos em contextos que promovam a aquisição da língua de sinais. Na ausência do input linguístico, os sujeitos surdos irão buscar formas para interagir espontaneamente com os ouvintes, por meio de gestos, sinais caseiros, o que chamamos de Língua de Sinais Emergentes.

Goldin-Meadow (2010) afirma que as crianças surdas criam os sinais caseiros para se comunicarem com as pessoas ao seu redor e tais produções evidenciam a capacidade humana para a linguagem. Entretanto, é necessário que os adultos se apropriem desses sinais para não interromperem o processo de desenvolvimento linguístico da criança.

Você Sabia?

Você sabia que além da Língua Brasileira de Sinais, há outras línguas de sinais no Brasil? Uma delas é a Língua de Sinais Cena, língua de sinais emergente de uma comunidade do sertão do Piauí. Uma reportagem exibida no programa "Fantástico", da Rede Globo, mostra um pouco da história e do trabalho que está sendo realizado para preservação dessa língua.

Assista aqui

3.2 Os contextos de aquisição da linguagem

Para que a criança surda passe pelos estágios de aquisição da linguagem apresentados anteriormente, é preciso que ela tenha contato com a língua de sinais desde cedo. Todavia, essa não é a realidade da maioria dos surdos brasileiros, uma vez que grande parte nasce em lares de famílias ouvintes.

Uma pesquisa realizada por Quadros et al (2018), com 891 surdos de diferentes regiões do Brasil, aponta que 80% dos surdos entrevistados tiveram contato com a língua de sinais após os 04 anos de idade, conforme é possível observar no Gráfico 1 abaixo.

Gráfico 1 - Idade de aquisição da Libras

Gráfico 1 - Idade de aquisição da libras Fonte: Quadros et al, 2018

Apenas 20% deles desenvolveram a língua nos primeiros anos de vida, no período mais favorável para a aquisição da linguagem. Esse dado é recente e mostra que a falta de acesso à língua de sinais ainda é uma realidade para muitos surdos, seja por desconhecimento da família ou por orientações médicas que preconizam outras formas de comunicação para esses sujeitos.

Se as crianças surdas estão adquirindo a língua de sinais após os 04 anos de idade, em qual contexto essa aquisição está acontecendo?

Para as pessoas ouvintes, o acesso à língua oral ocorre no contexto familiar, no lar, em interações com os familiares. Como comentamos no início da nossa conversa neste módulo, é bem provável que você nem se lembre como ocorreu o seu processo de aquisição da linguagem, haja vista a naturalidade de todo o processo.

Infelizmente, muitos surdos não passam por isso.

O gráfico 2 abaixo apresenta os contextos de aquisição da língua de sinais e mostra que o contexto familiar não é o espaço principal de desenvolvimento linguístico das crianças surdas, uma vez que apenas 9% dos entrevistados aprendeu Libras nesse ambiente.

Gráfico 2 - Contextos de aquisição da Língua Brasileira de Sinais

Gráfico 2: Contextos de aquisição da língua brasileira de sinais Fonte: Quadros et al, 2018

Como podemos observar no Gráfico 2, para muitos surdos o lar não é o primeiro espaço de contato com a língua de sinais, o que é bastante preocupante. Para que a criança surda possa se desenvolver seguindo os estágios de aquisição da linguagem, é fundamental que ela interaja com adultos e crianças que sinalizam, pois o contato com a língua de sinais é fundamental para o desenvolvimento desse sujeito, para os processos de significação dessa criança, para ela compreender e se apropriar do mundo a sua volta e, principalmente, para se comunicar.

Vamos conhecer algumas experiências de aquisição da Libras nesses contextos identificados por Quadros et al (2018)? Siga em frente nos estudos.

3.2.1 Aquisição da Libras no contexto familiar

O contexto familiar deveria ser o primeiro espaço de aquisição da língua de sinais pela criança surda. Porém, como vimos, nem sempre é essa a realidade das crianças surdas, especialmente daquelas que nascem em família de pais ouvintes.

A seguir, assista aos vídeos que apresentam depoimentos que mostram como a língua de sinais influenciou as relações familiares e o desenvolvimento das crianças.

Você percebeu nos vídeos o quanto a busca pelo aprendizado foi determinante para os pais conseguirem se comunicar com seus filhos?  

Dois relatos mostram o papel da família no processo de aquisição da linguagem e, sobretudo, na formação do sujeito. Quando os pais compartilham a mesma língua do filho, eles compartilham informações, conhecimentos, sentimentos, momentos de interação que diariamente vão constituir o sujeito surdo.

Em um dos depoimentos, percebemos a naturalidade do desenvolvimento da linguagem para uma criança surda filha de pais surdos, pois desde o nascimento a língua se fez presente no ambiente familiar.

Observe, no vídeo abaixo, como acontece essa interação entre pais e filhos surdos.

3.2.2 Outros contextos de aquisição da Libras

O contexto clínico também é destacado como um espaço de contato com a língua de sinais, geralmente quando o fonoaudiólogo tem proficiência nessa língua e pode utilizá-la em seus atendimentos, estimulando o processo de aquisição da linguagem.

O contexto religioso e as associações de surdos foram outros espaços mencionados pelos participantes da pesquisa realizada por Quadros et al (2018). Tais ambientes foram, por muito tempo, fundamentais para a disseminação da língua de sinais entre surdos e ouvintes.

Diferentes instituições religiosas desenvolveram, por muitos anos, ações de evangelização voltadas para a comunidade surda, as quais impactaram diretamente na aquisição da língua de sinais, por ser para muitos o primeiro lugar de contato com a língua. Da mesma forma, as associações de surdos ocuparam esse protagonismo no processo de aquisição da linguagem pelos sujeitos surdos, sendo um local de encontro com pares surdos e de trocas comunicativas.

3.2.3 Aquisição da Libras no contexto escolar

O contexto escolar, conforme o estudo de Quadros et al (2018), aparece como o principal ambiente de contato com a língua de sinais.

Você sabe o que isso significa?

Em linhas gerais, esse dado demonstra a importância da presença dos profissionais bilíngues - surdos ou ouvintes - no espaço escolar e, principalmente, de pessoas que conheçam as especificidades linguísticas e pedagógicas do aluno surdo.

Se a escola for o primeiro local de contato com a língua de sinais para a criança, possivelmente será também o lugar de referência para a família. Em muitos casos, cabe à escola a tarefa de conscientizar a família sobre a relevância do acesso à língua de sinais, desmistificando concepções enraizadas em torno da surdez e do desenvolvimento linguístico da criança.

Você Sabia?

O contexto linguístico em que a criança surda está inserida poderá ser determinante no seu processo de aquisição da linguagem, pois mesmo apresentando condições internas (biológicas) para adquirir a linguagem de forma natural e normal, como as crianças ouvintes, há a possibilidade de atraso linguístico e/ou sequelas devido à falta de input (estímulos linguísticos) em uma língua à qual a criança tenha acesso completo o mais cedo possível.

Informações e estudos referentes ao processo de aquisição normal precisam ser compartilhados com os pais, que muitas vezes desconhecem essa possibilidade e deixam de entender e de serem entendidos pelos filhos por um longo tempo” (Quadros e Cruz, 2011, p. 35).

E se muitas crianças surdas têm tido contato com a Libras somente no contexto escolar, quem são os profissionais que interagem com essas crianças nos primeiros anos escolares?

Você consegue perceber a importância de um pedagogo bilíngue preparado para trabalhar com crianças surdas, especialmente, pelo fato de ser fluente em língua de sinais?

É o pedagogo, profissional que atua na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, que oportuniza o input linguístico visual para as crianças surdas cujos pais não têm fluência ou sequer ouviram falar da língua de sinais.

Além disso, você, profissional da educação, tem papel fundamental na orientação às famílias a respeito de cursos de Libras, da participação em associações de surdos, mostrando que a Libras oportuniza a comunicação e possibilidades que ajudarão essa criança surda a trilhar seu próprio caminho.

Ressaltamos acima a importância do papel do pedagogo bilíngue na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental. Mas, você já ouviu falar no Decreto nº 5.626 de 2005? Pois bem, este Decreto regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras. Em seu capítulo III, da formação do professor de Libras e do instrutor de Libras, o Decreto traz o seguinte:

Art. 5º A formação de docentes para o ensino de Libras na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental deve ser realizada em curso de Pedagogia ou curso normal superior, em que Libras e Língua Portuguesa escrita tenham constituído línguas de instrução, viabilizando a formação bilíngue. (Brasil, 2005)

Conheça o texto completo do Decreto

É necessário que as escolas tenham professores bilíngues capacitados para o ensino na língua de sinais para as crianças surdas desde o início da sua escolarização. Para isso, é importante conhecer o processo de aquisição da língua de sinais e práticas pedagógicas que auxiliem nesse processo.

3.3 Papel da escola no processo de aquisição da língua de sinais

A partir do que foi apresentado até o momento, você consegue perceber o papel da escola no processo de desenvolvimento da criança surda?

É importante lembrarmos que para muitos surdos, o ambiente escolar vai ser o primeiro espaço de contato com a língua de sinais, com interlocutores fluentes nessa língua e com os pares surdos, diferente das crianças ouvintes que iniciam o processo de aquisição da língua em seus lares e chegam à escola com uma base linguística e conhecimento enciclopédico construído a partir das suas interações orais.

Não podemos negar que todos - ouvintes ou surdos - têm direito a uma educação de qualidade desde os primeiros anos de vida e isso inclui o papel da escola na etapa da Educação Infantil, onde os profissionais da educação precisam agir por meio de práticas pedagógicas com intencionalidade educativa.

A Base Comum Curricular apresenta os direitos de aprendizagem e desenvolvimento na educação infantil e todos são permeados pela linguagem - conviver, brincar, participar, explorar, expressar, conhecer-se. O documento destaca o direito de “EXPRESSAR” e reconhece a criança como um sujeito dialógico, que por meio de diferentes linguagens, poderá compartilhar suas “necessidades, emoções, sentimentos, dúvidas, hipóteses, descobertas, opiniões, questionamentos”.

Socialize!

E como podemos garantir que as crianças surdas tenham esses direitos contemplados, especialmente o de se expressar? Quais práticas podem proporcionar a aquisição da língua de sinais desde os primeiros anos de vida da criança surda? O que você pensa a respeito dessas questões? Você tem alguma prática pedagógica que possa ser compartilhada e que auxilie na aquisição da língua de sinais pelas crianças?

Compartilhe suas ideias com os colegas no fórum.

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Bom, agora que você já refletiu e socializou com os colegas sobre essas questões, que tal assistir ao vídeo abaixo e ampliar seus conhecimentos sobre o assunto?

O vídeo apresenta o Programa de Estimulação do Desenvolvimento, o PED, desenvolvido pelo Centro de Educação para Surdos Rio Branco e aborda o objetivo, a importância e as atividades realizadas no PED. É parte integrante de uma série de vídeos que tratam da educação de surdos, abordando desde a estimulação adequada a partir da descoberta da surdez, até a inclusão de surdos em salas de ouvintes.

Além de atuar diretamente no processo de aquisição das crianças surdas, as instituições de ensino também podem ser um espaço para acolhimento das famílias, especialmente dos pais ouvintes. No Brasil e em outros países, podemos encontrar iniciativas que promovem esse tipo de interação entre escola e família, por meio de projetos que fomentam o acesso à língua de sinais.

Recentemente, foi publicada a Coleção Ensinar e Aprender em Libras: Referenciais para o ensino de Língua Brasileira de Sinais como primeira língua na Educação Bilíngue de Surdos: da Educação Infantil ao Ensino Superior, com o objetivo de nortear e orientar as práticas voltadas para os alunos surdos no que se refere à aquisição da língua de sinais. E em seu primeiro volume, dentre as várias questões problematizadas, destacamos um trecho que diz que a escola deve considerar (Stumpf et al, 2021, p. 149):

  1. Que todo sujeito se constitui pela interrelação dele com o ambiente social (familiar, escolar, entre outros espaços que promovem a interação dialógica) e que a língua emerge no sujeito nessas relações interativas, portanto, se a relação familiar do sujeito surdo não oferece um ambiente confortável e favorável para essa interação comunicativa e que leva ao desenvolvimento linguístico/cognitivo dessas pessoas, dada as barreiras linguísticas familiares, a escola será o primeiro espaço para esse desenvolvimento pleno em favor de suas potencialidades.

  2. Que a escola bilíngue favorece um cenário qualitativo de avanço para um ambiente linguístico favorável que promove o desenvolvimento linguístico/social/cultural das pessoas surdas. Diante do desafio da relação interativa em Libras nos espaços familiares, a escola tem compromisso com a aquisição de linguagem desses sujeitos e deve pensar em efetiva proposta entre família e escola. A ampla atenção à aquisição de linguagem deve se dar como elemento curricular desde a Educação Infantil.

Em seu segundo volume, foram organizados eixos estruturantes para o ensino de Libras na Educação Infantil. São eles:

  • Língua (aquisição da Libras),
  • Comunidade (pertencimento e interação),
  • Identidade (percepção e cuidado de si) e
  • Desenvolvimento (saberes físicos e intelectuais) (Stumpf et al, 2021).

Cada um desses eixos possui objetivos que orientam competências e habilidades organizadas nas três faixas etárias que fazem parte do nível escolar educação infantil:

3.4 Práticas pedagógicas para a aquisição da língua de sinais

A partir do que vimos até agora, acreditamos que você já está pensando sobre como elaborar práticas pedagógicas que favoreçam situações linguísticas efetivas para a criança surda, não é mesmo?

As atividades planejadas para as crianças surdas precisam, além de tudo, proporcionar o contato com a cultura e com a identidade surda. Nesse sentido, os professores precisam buscar referências da cultura surda e trazer para a sala de aula, seja através de contação de histórias da literatura surda ou por meio de atividades que envolvam pessoas surdas.

Atualmente, há muitos materiais que podem auxiliar o docente nessas escolhas e proporcionar o acesso à informações que não são acessadas, em muitos casos, no contexto familiar. Ademais, a escola tem um papel fundamental no aprofundamento e desenvolvimento da estrutura gramatical da Libras e na compreensão das diferentes funções e usos da língua de sinais, seja no contexto formal ou informal.

Uma das possibilidades para esse trabalho é a utilização da literatura surda. Vamos aprofundar um pouco mais sobre este assunto.

3.4.1 Literatura Surda

O uso da literatura é uma estratégia riquíssima para:

  • desenvolver a linguagem das crianças, aumentando o vocabulário e aprimorando a oralidade (produção da língua)
  • instigar a criatividade e imaginação,
  • incentivar a leitura,
  • apresentar um tema gerador para reflexão,
  • ampliar o repertório cultural, apenas para citar alguns exemplos.

A leitura de livros ou contação de histórias é bastante comum nas práticas pedagógicas da educação infantil e não deve se restringir a essa etapa da educação.

Mas, e como trabalhar com a literatura surda? Você já tinha ouvido falar nessa expressão?

Essa literatura mostra a perspectiva que os surdos têm do mundo, apresenta os interesses da comunidade surda e o sentimento em relação aos ouvintes, aprimora as habilidades de sinalização de seus espectadores, ensina valores culturais, colabora para o ensino de segunda língua e é uma atividade de entretenimento (Ryan, 1993).

Pela literatura, há identificação entre pares e a apropriação e produção cultural.

Pode ter como base vários gêneros textuais como piada/anedota, narrativa simples ou poesia e o uso de vídeos para o registro desses gêneros não os descaracteriza como sendo parte da literatura.

De acordo com Rosa (2011), a literatura pode agregar diferentes tipos de obra:

  1. a tradução, para a Libras, de histórias escritas originalmente para públicos ouvintes;
  2. a adaptação de uma história escrita originalmente para o público ouvinte, alterando alguns aspectos para que se aproxime mais das experiências dos surdos; e
  3. as produções elaboradas em língua de sinais já na sua origem, ou seja, literatura pensada pelo o público surdo e feita de forma visual.

Selecionar histórias que possuam personagens surdos colabora para a introdução de vários temas a serem trabalhados com as crianças. A contação de histórias em língua de sinais proporciona, entre outras questões, aumento de vocabulário cultural e historicamente construído, reconhecimento de diferenças culturais entre surdos e ouvintes, identificação da criança surda como tal, reconhecimento dos artefatos da cultura surda, percepção de aspectos prosódicos da sinalização (Stumpf et al, 2021).

Ao contar histórias sinalizadas, o professor precisa enfatizar as expressões faciais e corporais e manter-se no espaço visual da criança a fim de que ela se envolva e acompanhe a história.

Não precisamos desenvolver um tema gerador em todos os momentos da contação de histórias, pois a própria rotina pode ser permeada de comunicação significativa. Os momentos de higiene ou alimentação são oportunidades para nomear as partes do corpo, narrar o que devemos fazer depois de ir ao banheiro ou antes de iniciar uma refeição, aprender o que fazemos em cada cômodo da casa, dentre outras possibilidades.

Vale lembrar que a maioria das crianças surdas não tem esse tipo de diálogo com seus familiares e que todas as práticas devem ter intencionalidade pedagógica. Desse modo, é necessário que haja uma organização intencional do ambiente e de situações que favoreçam interações comunicativas mesmo com os bebês.

Dispor de materiais de cores, sons e texturas diversas proporciona experiências e ações diferentes sobre os objetos, instigando a curiosidade das crianças e oportunizando uma interação efetiva com a professora (Nogueira e Bissoli, 2017).

Algumas práticas incorporadas ao cotidiano escolar, podem impactar positivamente no processo de aquisição da língua de sinais, como os registros em vídeos. A ação de filmar a criança explicando os conteúdos vivenciados ou algum conceito aprendido em sala de aula, é uma estratégia interessante para que a criança surda organize suas ideias e pensamento em sua língua e desenvolva as competências discursiva, linguística e, consequentemente, a competência comunicativa.

PARA SABER MAIS!

Para conhecer mais detalhes sobre práticas pedagógicas em cada faixa etária na Educação Infantil, acesse o volume 2 da coleção de livros que trata do ensino de Libras como primeira língua!

Vol. 2 – Ensino de Libras como L1 na Educação Infantil

3.4.2 Avaliação como forma para identificar o conhecimento linguístico

Antes de iniciar qualquer trabalho pedagógico é preciso saber de onde partir, não é mesmo? É preciso saber quais conhecimentos as crianças já construíram e, no caso das crianças surdas, principalmente, o quanto já adquiriram da língua.

Para orientar as práticas que serão realizadas para promover a aquisição da língua de sinais, é fundamental que o professor utilize formas de avaliação que o permitam identificar o nível de conhecimento linguístico daquela criança. A avaliação poderá ocorrer por meio de instrumentos formais ou informais - por registros diários, a partir da observação do docente.

Quadros e Cruz (2011) disponibilizam em seu livro “Língua de Sinais: instrumentos de avaliação” a descrição, aplicação e a análise de avaliação em língua de sinais. De modo geral, as autoras propõem avaliar os aspectos relacionados à compreensão e expressão em crianças surdas a partir dos 04 anos de idade, a fim de possibilitar ao professor verificar se o desenvolvimento da linguagem está dentro do esperado para a idade ou não e, a partir disso, planejar intervenções que possam colaborar nesse processo.

Observe no quadro abaixo o que as autoras propõem sobre cada um dos tipos de avaliação:

Quadro 1 - Avaliação da Linguagem de Sinais

Avaliação da Linguagem Compreensiva

O objetivo é avaliar a compreensão da criança em língua de sinais, através da observação do processamento das informações linguísticas.

Para isso, as crianças visualizam vídeos com frases - de diferentes níveis (I, II e III) - e, em seguida, escolhem as fichas que correspondem à sentença sinalizada.

Na fase I, são apresentadas frases simples. Já na fase II, as sentenças são mais complexas e há um aumento de vocabulário. Na fase III, há um aumento da complexidade sintática, como o uso de diferentes espaços. Abaixo você pode ver um exemplo de texto sinalizado e das fichas que são disponibilizadas na fase I para verificação da compreensão.

Fonte: Quadros e Cruz (2011)

Caso você não tenha acesso ao material de Quadros e Cruz (2011), é possível criar seus próprios instrumentos. Por exemplo, o professor pode sinalizar as frases e escolher as imagens que irão compor as fichas visuais.

Avaliação da Linguagem Expressiva

O foco está na produção da criança, na capacidade de expressar-se em língua de sinais.

Desse modo, a avaliação parte da apresentação de uma narrativa em vídeo para a criança, a qual, em seguida, produzirá, em língua de sinais, o que foi observado.

Recomenda-se que a sinalização seja gravada para posterior análise, onde o professor poderá fazer uma transcrição e observar o uso adequado ou inadequado de algumas questões, como o uso de classificadores, o uso de referências no espaço, a quantidade de fatos e se há existência ou não de uma sequência lógica. Além disso, é possível analisar também o nível fonológico, semântico, morfológico, sintático/discursivo dessa criança.

Caso você não tenha acesso ao material de Quadros e Cruz (2011), sugerimos utilizar vídeos com narrativas curtas disponíveis na internet.

Fonte: Adaptado de Quadro e Cruz (2011)

Você se sentiria capacitado(a) para realizar uma avaliação com base nos instrumentos apresentados no quadro acima? Conseguiria analisar a produção da criança surda e fazer as escolhas de intervenções pedagógicas para potencializar o seu desenvolvimento linguístico?

Você conseguiu perceber que o trabalho com as crianças surdas exige do professor conhecimentos pedagógicos e linguísticos? Por isso, é fundamental que os profissionais que atuam com esse público tenham conhecimento da língua de sinais, busquem capacitar-se para compreender a língua da criança surda, pois é através dela que o trabalho em sala de aula acontecerá.

Sempre que abordamos o desenvolvimento da língua de sinais, em atividades pedagógicas voltadas para a aquisição da linguagem, trabalhamos - direta ou indiretamente - o aprimoramento dos aspectos linguísticos em seus mais variados níveis.

As atividades contemplarão, por exemplo, a apropriação do uso consistente de referentes presentes e não presentes (sintaxe), as formas de registro da língua (pragmática), a marcação de plural ou intensidade por meio das expressões não manuais (morfologia), a configuração de mão (fonologia), entre outras características.

É importante destacar que as propostas de intervenções devem se relacionar à realidade da criança, ao uso que ela faz da língua no ambiente escolar, familiar ou social.

Cool et al (1995 apud Quadros e Cruz, 2011) elencaram algumas orientações básicas para serem consideradas pelos profissionais que atuam diretamente com as crianças surdas, como por exemplo:

  1. adequar as escolhas ao conhecimento e experiência da criança;
  2. partir dos interesses da criança para tornar a aprendizagem significativa;
  3. reforçar os acertos das crianças e evitar corrigir;
  4. reforçar os êxitos e dar feedback;
  5. oportunizar práticas que possibilitem o uso da linguagem, como questionar, realizar julgamentos;
  6. proporcionar momentos lúdicos e
  7. fomentar a participação da família nas atividades propostas.

PARA SABER MAIS!

Quer saber um pouco mais sobre a língua de sinais? Disponibilizamos os volumes I e volume II da Gramática da Libras. As publicações são atuais e apresentam um panorama dos estudos na área da língua de sinais, sobretudo, dos aspectos gramaticais.

Volume 1 Volume 2

Você estudou até aqui sobre a apropriação da língua de sinais pelas crianças surdas. Mas e a aprendizagem do português escrito como segunda língua, como acontece?

Na sequência do estudo, ampliaremos os conhecimentos sobre esse assunto, vamos lá?

4. Apropriação do português escrito como segunda língua pelos surdos

É importante que você conheça e compreenda a situação sociolinguística na qual a pessoa surda se encontra: ela convive e interage diariamente com duas comunidades linguísticas distintas, a dos surdos e a dos ouvintes. Portanto, ela precisa se tornar bilíngue, pois pelo menos duas línguas são necessárias para a realização das diferentes tarefas de sua vida cotidiana, uma língua de sinais e o português escrito (no caso do Brasil).

Na comunicação com outros surdos e com os ouvintes sinalizantes, ela necessita da Libras e na comunicação com os ouvintes não sinalizantes ela precisa do português escrito. Esse tipo de bilinguismo tem sido denominado como “bilinguismo bimodal” ou “bilinguismo surdo” (Grosjean, 1993; Quadros, 2008; Quadros, 2017).

Veja a definição desenvolvida por François Grosjean para esse tipo de bilinguismo:

Imagem de François Grosjean

François Grosjean

“O bilinguismo que observamos na comunidade surda é um bilinguismo de minoria em que os membros da comunidade adquirem e utilizam tanto a língua minoritária (língua de sinais) quanto a língua majoritária na sua forma escrita e, às vezes, na sua forma oral e, até mesmo, na sua forma sinalizada”
(Grosjean, 1993, p. 74)

4.1 O lugar do português escrito no bilinguismo surdo

Por muito tempo, a apropriação da segunda língua esteve ligada às situações de uso do português escrito no domínio educacional apenas, isto é, para fins acadêmicos na realização das atividades escolares. Contudo, nas últimas décadas, está ficando cada vez mais evidente que o português é uma língua não apenas para o acesso aos conhecimentos registrados na forma escrita pelos surdos, mas, igualmente, uma língua de comunicação.

O advento, a expansão e a massificação do uso das tecnologias digitais para a comunicação colocaram em evidência a modalidade instantânea ou direta da comunicação escrita (quando a mensagem enviada é recebida imediatamente pelo receptor), sobretudo, via aplicativos de mensagens como o WhatsApp, por exemplo. Assim, a comunicação escrita deixou de ser exclusivamente na modalidade diferida (quando entre a emissão e a recepção existe um intervalo temporal). Portanto, seu uso não está e não pode ficar restrito ao ambiente da sala de aula.

Diante desse novo cenário, Quadros (2019) chama a atenção para o processo de ressignificação da relação dos surdos com o português escrito, desencadeado pelo avanço da tecnologia. De acordo com a autora, “os surdos têm usado o português nas redes sociais para interagir uns com os outros e isso é importante, pois o português passa a ter sentidos reais de uso em suas vidas” (Quadros, 2019, p. 152).

Neste processo de ressignificação, apontado por Quadros (2019), nós temos observado também a emergência de uma dimensão política no uso da segunda língua pelos surdos, sobretudo nas redes sociais. Em momentos que nos parecem estratégicos, os vídeos em Libras, produzidos em contextos não formais, são acompanhados do mesmo conteúdo em português escrito (seja uma versão ou um resumo), como você pode ver nos dois exemplos abaixo:

Fonte: Vilhalva (2023)

Isso nos leva a inferir que surdos bilíngues têm a consciência de que o alcance da comunicação por meio do português escrito, para defender as causas do movimento surdo, é muito maior do que o da Libras e/ou que seu discurso em Libras ficaria restrito à comunidade surda e aos ouvintes sinalizantes sem a utilização dessa estratégia comunicacional.

Fonte: Lima (2023)

Você Sabia?

Shirley Vilhalva é surda. Professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Possui graduação em Pedagogia e mestrado em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina.

Marisa Lima Dias é surda. Professora Adjunta da Universidade Federal de Uberlândia. Possui doutorado em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia e mestrado pela Universidade de Brasília. Graduada em Letras Libras e Pedagogia. Atualmente, é Coordenadora Geral de Atendimento Especializado, da Diretoria de Políticas de Educação Bilíngue de Surdos, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão-SECADI do Ministério da Educação (MEC).

Em outras palavras, muitos surdos parecem estar utilizando o português escrito como um instrumento para fazer valer seus direitos diante da comunidade ouvinte brasileira. Outro aspecto importante no que tange aos novos possíveis usos do português escrito pelos surdos, diz respeito à sua integração profissional nos grupos de WhatsApp, em que as informações, dependendo do contexto de trabalho, são transmitidas exclusivamente ou majoritariamente por meio do português escrito.

E você, já tinha pensado sobre o contexto de utilização do português escrito pelos surdos nos dias de hoje?

4.1.1 Utilização do português escrito pelos surdos

Como você viu, os usos do português escrito pelos surdos podem ser diversos. Isso acontece em função das diversas situações que podem ocorrer nos diferentes domínios de sua vida social. Esses domínios podem ser muito diversificados, contudo, com base no Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas (CONSELHO DA EUROPA, 2001), conseguimos distinguir os seguintes:

  • o domínio pessoal, que envolve a vida privada do surdo, centrado no lar, nas suas relações com a família e os amigos (surdos e ouvintes), bem como suas atividades mais individuais (assistir vídeos, filmes e séries, ler, navegar na Internet, interagir nas redes sociais etc.);
  • o domínio público, que se refere às interações sociais do cotidiano da pessoa surda (nos lugares públicos, no transporte público, nas lojas e supermercado, nos hospitais, nos restaurantes, nos cinemas etc.);
  • o domínio profissional, que está relacionado às atividades e as relações dos surdos no exercício de sua profissão; e
  • o domínio educacional, que diz respeito ao contexto de aprendizagem e formação em instituições de ensino (creches, escolas, associações, universidades, etc.).

Em cada um desses domínios, as situações de uso do português escrito pelos surdos são moldadas pelos lugares, pelas instituições, pelas pessoas, pelos objetos, pelos textos, pelos temas e subtemas de comunicação e pelos acontecimentos característicos do domínio em questão.

Além disso, nessas situações, de acordo com a necessidade, a pessoa surda pode ou precisará realizar as seguintes atividades comunicativas por meio do português escrito:

  1. Recepção, em que o surdo lê e compreende textos escritos diversos produzidos por um ou vários escritores. Esse tipo de atividade comunicativa envolve a leitura para se orientar, para se informar, para seguir instruções, por prazer, a assistência de vídeos, filmes e séries legendados etc.;
  2. Produção, em que o surdo produz textos escritos para um ou vários leitores. Esse tipo de atividade comunicativa inclui o preenchimento de formulários, a criação de contas nas redes sociais, a escrita de e-mail, a escrita resumos, artigos e relatórios, entre outras;
  3. Interação escrita online que, atualmente, desempenha um papel central na comunicação em português escrito realizada pelos surdos em ambientes digitais (com os ouvintes e com outros surdos). Esse tipo de atividade comunicativa implica, pelo menos, duas pessoas cuja produção e recepção se alternam e o surdo precisa ser capaz de prever o fim da mensagem de seu interlocutor, a fim de preparar sua resposta (por isso, aprender a interagir envolve mais do que as atividades de recepção e produção); e
  4. Mediação sinalizada em que o surdo não precisa expressar seu pensamento, mas desempenhar o papel de intermediário entre textos escritos em português e interlocutores surdos que, por alguma razão, não são capazes de compreendê-los diretamente. Para Cruz (2023), esse tipo de atividade comunicativa envolve uma mediação interlinguística, intermodal e intersemiótica, realizada para a transmissão de uma informação em português escrito para a Libras (em ambientes formais ou informais), por meio de um tipo de tradução ou interpretação não formal.

NA PRÁTICA!

  • Para deixar mais claro essas noções de domínio e de situações de uso do português escrito pelos surdos, bem como a de atividade comunicativa, faça o seguinte exercício mental:
  • Imagine um estudante surdo que precisa tomar um ônibus para ir de sua casa ao IFSC Palhoça Bilíngue.
  • Agora, reflita sobre as atividades comunicativas nas quais ele precisará fazer uso do português escrito para realizar essa tarefa com sucesso. Para isso, as questões abaixo poderão lhe ajudar:
    1. Em qual domínio esta situação se inscreve?
    2. Nesse domínio, em quais locais/espaços o surdo necessitará utilizar (ou lhe será exigido) o português escrito?
    3. Nesses locais/espaços, quais temas e subtemas compõem os textos que o surdo necessitará ler ou que lhe será exigido que leia?
    4. Em resumo, na tarefa de se deslocar por meio do transporte público, o surdo precisará do português escrito para fazer o quê?

Você já tinha parado para pensar o quanto o português escrito é necessário para o deslocamento no transporte público? Você já imaginou como seria a realização dessa tarefa se você não soubesse ler?

Em face desses novos sentidos reais de uso do português escrito na vida social da pessoa surda, o processo de apropriação de sua segunda língua precisa propiciar a compreensão de que o português escrito também é um meio de comunicação e, para tanto, o conhecimento das diferentes funções da escrita no seu cotidiano, as quais, você já viu aqui, extrapolam os muros da escola. Diante disso, estamos cada vez mais convencidos de que o processo de apropriação de segunda língua pelos surdos continua fora da sala de aula. Essa questão nos encaminha à uma breve (re)discussão acerca das noções de “aquisição” e de “aprendizagem”.

VOCÊ SABIA?

O Common European Framework of Reference for Languages, mais conhecido pela sigla CEFR, é o Quadro Europeu Comum de Referência para Línguas (QECR).

É um documento de referência para o ensino/aprendizagem de línguas, que descreve o que os aprendentes devem aprender para serem capazes de utilizar a língua para se comunicarem. Também define os níveis de competência que permitem ao professor verificar o progresso da aprendizagem do aluno.

O QECR se popularizou no mundo todo e, aqui no Brasil, ela já está sendo adaptado e adotado como referência para a elaboração de aulas, programas e cursos de línguas para o público surdo e de língua de sinais para o público ouvinte.

Conheça e consulte o Quadro Europeu Comum de Referências para as Línguas (QECR), acessando o link abaixo:

Quadro Europeu comum de referência para as línguas

4.2 Aquisição versus Aprendizagem: o processo de apropriação de uma segunda língua

Você conhece a distinção entre “aquisição” e “aprendizagem” no processo de apropriação de uma segunda língua?

Para Krashen (1981), aquisição e aprendizagem são processos opostos. A aquisição, segundo o autor, seria um processo natural, implícito, inconsciente, cujo foco residiria no sentido; já a aprendizagem seria um processo artificial, explícito, consciente com o foco na forma. Diante disso, Quadros (2008) considera que a apropriação da segunda língua pelos surdos parece ser possível apenas por meio de um processo de aprendizagem de forma sistemática, necessitando de ensino formal.

Embora o processo de apropriação do português escrito fique mais evidente quando a criança surda entra na escola, vale você se perguntar:

Será que os surdos só são capazes de se apropriar do português escrito no ambiente formal de ensino, isto é, no contexto da sala de aula? Será que nesses espaços não há, também, aquisição? Será que não há aprendizagem e aquisição do português escrito pelos surdos fora da sala de aula?

Na verdade, atualmente, nós compreendemos que os processos de aquisição e de aprendizagem se articulam para a apropriação de uma segunda língua e que nada poderia justificar tal dicotomia (PENDANX, 1998). Em outras palavras, está claro que não existe aprendizagem sem aquisição, da mesma forma que não há aquisição sem aprendizagem. Veja a explicação de Michèle Pendanx acerca da articulação desses dois processos:

“[...] não há aprendizagem que não resulte de um certo grau de aquisição, e esta pressupõe um determinado processo de aprendizagem, do qual ela é o resultado. Nesse caso, a aprendizagem seria considerada como o tratamento do material linguageiro (seja ele imposto do exterior – na situação de ensino – ou seja ele realizado no âmbito de uma autoaprendizagem mais ou menos orientada), e a aquisição considerada como aquilo que é automatizado e interiorizado, e que resulta de operações conscientes e não conscientes do tratamento linguageiro”

(PENDANX, 1998, p. 59)

Em nossa prática de ensino de português escrito como segunda língua para surdos, temos coletado bastante evidências da articulação entre aquisição e aprendizagem. Na própria sala de aula, nós percebemos “aprendizagens” que não foram ensinadas aos aprendentes surdos. Por exemplo, alguns aprendentes surdos constituem bancos de palavras e de frases no celular - para consultar e empregá-las em situações de comunicação reais em seu cotidiano tanto na sala de aula, quanto fora dela.

Essa estratégia de apropriação não foi apresentada ou ensinada pelo professor em sala de aula e o conteúdo desses bancos não é definido pelas aulas, mas pela percepção do aprendente surdo de que em determinada situação real de comunicação por meio do português escrito, ele já precisou lançar mão de palavras e/ou frases de que não lembrava ou não conhecia, e então, ou ele antecipa futuros usos ou, ainda, ele percebe que se já usou e funcionou, pode estocar para reutilizar.

Há também casos de aprendentes surdos que diante de uma palavra nova (para eles), eles param e fazem a soletração manual para memorizar o novo vocábulo (que não era objeto da aprendizagem da aula) ou de aprendentes surdos que chegam para as aulas solicitando a definição de determinada palavra lida no instagram, no facebook ou nas legendas no story do WhatsApp.

Há também aquisições que acontecem na interação com os seus pares surdos durante as aulas de segunda língua.

Esses exemplos definem um claro processo de autoaprendizagem desenvolvido de forma autônoma pelos aprendentes surdos tanto em ambientes formais quanto não formais de ensino/aprendizagem do português escrito.

Perceba, a partir dos exemplos apresentados, que a sala de aula, ambiente formal de ensino/aprendizagem, pode ser um lugar potencial de aquisição do português escrito como segunda língua. Diante disso, preferimos usar o termo “apropriação” em vez de “aquisição” ou “aprendizagem” do português escrito pelos surdos, pois, nos unimos à Castellotti (2001) para definir “apropriação” como um termo genérico que engloba tanto o processo de aquisição quanto o de aprendizagem de línguas a partir de uma perspectiva não apenas linguística, mas também social, psicológica e ideológica.

Assim, para nós, a “apropriação de segunda língua pelos surdos” designa

o processo pelo qual os surdos desenvolvem os conhecimentos, os saberes, as habilidades e as competências necessárias para o uso do português escrito nos diferentes domínios de sua vida social, por meio de operações conscientes e não conscientes, em ambientes formais e não formais de ensino/aprendizagem.

E como acontece a apropriação da escrita pelos sujeitos surdos? Quais as especificidades envolvidas nesse processo? No segundo módulo deste curso, você vai aprender sobre as características inerentes ao ensino/aprendizagem do Português escrito como segunda língua para surdos.

Considerações finais

Então, chegamos ao fim do Módulo 1 do curso! Até aqui você viu os contextos de aquisição da linguagem, como acontece o processo de aquisição da língua de sinais a partir de diferentes perspectivas, o que caracteriza o processo de aprendizagem do Português escrito como segunda língua para surdos e como se dá a apropriação escrita por essas pessoas.

No Módulo 2 você estudará sobre os fundamentos de alfabetização e letramento e práticas de ensino de leitura e escrita.

Até lá!

Referências

BRASIL. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. 2005. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm. Acesso em: 08 nov. 2023.

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CONSELHO DA EUROPA. Quadro Europeu comum de referência para as línguas: aprendizagem, ensino, avaliação. dez. 2001. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/7063567/mod_resource/content/1/Quadro_Europeu_total.pdf. Acesso em: 09 nov. 2023.

CRUZ, Eder Barbosa. Por uma Didática do Português Língua Segunda Para Surdos: Concepção inicial de uma disciplina. Tese (Doutorado em Linguística na linha de pesquisa de Ensino-aprendizagem) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2023.

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ROSA, Fabiano Souto. Literatura surda: o que sinalizam professores surdos sobre livros digitais em Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Pelotas, 2011. 160f.

RYAN, Stephen. Let’s tell an ASL story. In: GALLAUDET UNIVERSITY. Deaf Studies III: Bridging Cultures in the 21st. Century, April 22–25. Washington, D.C: Gallaudet University, Continuing Education and Outreach, 1993. p.145–150.

STUMPF, Marianne Rossi et al. Referenciais para o ensino de Língua Brasileira de Sinais como primeira língua para surdos na Educação Bilíngue de Surdos: da Educação Infantil ao Ensino Superior, Vol. 2, Petrópolis, RJ: Arara Azul, 2021. Disponível em: https://editora-arara-azul.com.br/site/ebook/detalhes/24. Acesso em: 18 out. 2023.

VIGOTSKI, Lev Semionovich. Teoria e método em psicologia. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

VILHALVA, Shirley. (@shirleyvilhalva). Verdadeiro significado do Dia do Surdo. Instagram, 26 set. 2023. Disponível em: https://www.instagram.com/reel/CxprzJ-OQDE/?igshid=N3o0aGR2YjZtOXR0. Acesso em: 09 nov. 2023.

A criança surda e o desenvolvimento da linguagem

[ Conteúdo ]

Aline Miguel da Silva dos Santos

Bruna Crescêncio Neves

Eder Barbosa Cruz

[novembro 2023]

[ Design instrucional ]

Caroline Lengert

[ Design gráfico ]

Daniel Mazon da Silva

Jennifer Patricio Candido

[ Equipe de Tradução ]

[ Tradutor de Libras Surdo ]

Claudio Souza Brito

Gabriel Finamore de Oliveira

Paulo Ricardo Campos

Simone Gonçalves de Lima da Silva

[ Equipe de Tradução ]

[ Intérprete de Libras ]

Giliard Bronner Kelm

Karen Fernanda Bianchini da Silva

Saionara Figueiredo Santos

Tatiane da Silva Campos [coordenadora]

[ Edição de Vídeo ]

Leonardo Adonis de Almeida

Como referenciar este livro:

SANTOS, Aline Miguel da Silva dos; NEVES, Bruna Crescêncio; CRUZ, Eder Barbosa. A criança surda e o desenvolvimento da linguagem. 2023. Disponível em: https://moodle.ifsc.edu.br/mod/book/view.php?id=129977. Acesso em: 05 dez. 2023. [material digital]. 

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