2.1 O papel da primeira língua de sinais no processo de apropriação da leitura-escrita pelos aprendentes surdos

O processo de apropriação da leitura-escrita pressupõe o desenvolvimento prévio de algumas competências que vão incidir diretamente sobre as habilidades do aprendente leitor-escritor surdo para compreender e escrever um texto. Para Perini (2013), tais competências precisam ser adquiridas na fase pré-escolar e continuar sendo desenvolvidas na e pela escola. A autora nos mostra que um dos pré-requisitos fundamentais para a apropriação da leitura-escrita pelo aprendente surdo é a constituição de uma “bagagem de conhecimentos e de conceitos”, isto é, o desenvolvimento conceitual. Além disso, o aprendente leitor-escritor surdo necessita construir as habilidades necessárias para tratar os dados adquiridos graças ao seu desenvolvimento conceitual, o que requer o desenvolvimento das funções executivas.

Perini (2013, p.31) explica que:

No que se refere à escrita, essas funções asseguram um conjunto de operações, como a emissão de hipóteses sobre o sentido de uma palavra, a seleção de conhecimentos gramaticais úteis para interpretar corretamente um enunciado ou ainda a dedução de informações implícitas do texto.

Desse modo, a fase pré-escolar deveria ser um momento privilegiado para a familiarização da criança surda com a escrita, através de situações que permitissem os primeiros contatos com a língua escrita (o manuseio de livros, por exemplo), e as primeiras tentativas de identificação e/ou reconhecimento das letras e dos símbolos gráficos (Perini, 2013).

 

Você não pode esquecer de que a criança surda “[...] não tem a possibilidade de ‘reconhecer’ nas palavras escritas, as palavras faladas em seu entorno” (Hamm, 2012, p. 106). Assim, a exposição precoce aos livros poderia levar a criança surda a tomar consciência do valor simbólico e social da escrita (Courtin, 2005). Para esse autor, trata-se já da “emergência do processo de alfabetização”, o que facilitaria a aprendizagem formal da leitura, quando a criança surda ingressar na escola, uma vez que ela já chegaria sabendo o que é a escrita e para que ela serve.

É essencial que você tenha em mente que o desenvolvimento prévio dessas competências durante a fase pré-escolar está intrinsecamente ligado à apropriação de uma primeira língua de sinais pela criança surda (a Libras, ou a língua de sinais da micro-comunidade surda à qual ela pertence ou uma Língua de Sinais Emergente).

Segundo Duhayer, Frumholz e Garcia (2006), nós não deveríamos ter dúvida de que a primeira condição para a apropriação da leitura-escrita pelos aprendentes surdos é o seu pleno desenvolvimento na sua primeira língua de sinais, pois é somente em língua de sinais que esses indivíduos são capazes de desenvolver normalmente e completamente suas competências cognitivas, sociais e psicológicas, sem as quais ninguém (surdo ou ouvinte) é capaz de compreender o que é uma língua e de se apropriar da leitura-escrita.

Ademais, segundo Niederberger e Prinz (2005), muitos autores defendem a hipótese de que transferências da primeira língua de sinais do aprendente leitor-escritor surdo para a língua escrita são possíveis, tanto no plano linguístico e/ou metalinguístico, quanto no plano cognitivo.

No que diz respeito às transferências linguísticas das línguas de sinais para a língua escrita, Padden e Ramsey (2000) sugerem que os sinais soletrados (aqueles formados pela representação ortográfica completa ou parcial de palavras de uma língua escrita por meio da datilologia – em Libras temos, por exemplo: A-Z-U-L; N-U-N-C-A; O-I; e V-A-I (Veja a figura 5), e os sinais inicializados (aqueles que iniciam com a datilologia da primeira letra correspondente às palavras de uma língua escrita – em Libras temos como exemplo: VERDE; MARROM, entre outros (Veja a figura 6), poderiam ser uma ponte entre a primeira língua de sinais do aprendente leitor-escritor surdo e a língua escrita.

Figura 5 - Sinais soletrados

Fonte: Pizzio, Rezende e Quadros (2009, p. 35).

Figura 6 - Sinais inicializados da Libras

Fonte: Pizzio, Rezende e Quadros (2009, p. 36).

Nessa mesma perspectiva, podemos acrescentar os sinais que retomam a forma dos sinais gráficos de uma língua escrita (em Libras temos como exemplo os sinais ASPAS, PONTO e INTERROGAÇÃO (Veja a figura 7). Em síntese, essas três categorias de sinal podem propiciar transferências lexicais da Libras para o português escrito.

Figura 7 – Sinais da Libras que retomam a forma dos sinais gráficos da língua portuguesa escrita

Fonte: Pizzio, Rezende e Quadros (2009, p. 36).

 

Os conhecimentos que os aprendentes surdos adquirem no nível discursivo (como a gramática das narrativas e a gestão de informação), em sua primeira língua de sinais podem ser, igualmente, transferidos para a língua escrita (Wilbur, 2000). As habilidades metalinguísticas que o aprendente leitor-escritor surdo desenvolve nas experiências linguísticas com sua primeira língua de sinais também podem possibilitar a realização de comparações entre esta e a língua escrita, em que ele é capaz de contrastar as diferenças e as semelhanças entre essas línguas (Mayberry; Lock, Kazmi, 2002).

Como você acabou de ver, a primeira língua de sinais do aprendente leitor-escritor surdo desempenha um papel crucial no seu desenvolvimento cognitivo e na aquisição do conhecimento prévio necessário para a construção de sentido no momento da leitura. Na próxima seção, você vai conhecer um pouco mais os processos cognitivos da leitura.