2.4 A emergência da interlíngua do aprendente surdo no processo de apropriação da escrita

Até aqui, nesse módulo, nós apresentamos algumas amostras de como se dá a produção escrita dos surdos e esperamos que você tenha percebido as singularidades desse processo (limitação do léxico, uso inadequado de verbos e preposições, omissão de conectivos, entre outras). Você precisa estar ciente de que essas singularidades caracterizam o nível de apropriação da língua portuguesa escrita em que o aprendente surdo se encontrava no momento da produção.

No campo do ensino-aprendizagem de línguas, os níveis de apropriação linguageira deram origem a noção de “interlíngua” (Selinker, 1972), isto é, uma língua intermediária entre a primeira língua e a língua-alvo (Pendanx 1998). Desse modo, no caso da interlíngua do aprendente surdo, estamos falando de uma língua intermediária entre a sua primeira língua de sinais e a Língua Portuguesa, caracterizada pelo uso que o aprendente surdo faz do português escrito no nível de apropriação em que ele se encontra. À medida em que o aprendente surdo vai progredindo no processo de apropriação do português escrito, sua interlíngua vai evoluindo e se aproximando mais dos usos correntes da língua-alvo, conforme ilustrado na figura abaixo.

Figura 8 - Emergência das interlínguas no processo de apropriação do português escrito pelos surdos

Fonte: Elaborado pelos autores

Contudo, na ausência de profissionais especializados, de modelos e métodos para a alfabetização e letramento de crianças surdas e de abordagens específicas para o ensino de português como segunda língua para surdos (PSLS), é muito comum que haja o fenômeno da fossilização (Selinker, 1972), isto é, o aprendente surdo vai manter na sua interlíngua elementos e regras da sua primeira língua de sinais.

Assim, surgem os “erros fossilizados” na sua produção escrita, aqueles erros que se tornam permanentes e estáveis e que tem caracterizado o texto dos aprendentes surdos, dentre os quais, os mais comuns são a conjugação inadequada dos verbos, o uso inadequado ou omissão de conectivos e a inadequação da ordem frasal.

Diante disso, você, professor, precisa estar ciente de que as singularidades da produção escrita dos aprendentes surdos, que, inadvertidamente, alguns autores insistem em denominar de “português de surdo” são, como você está vendo, apenas uma das línguas intermediárias do aprendente surdo no estágio de apropriação da língua portuguesa escrita em que ele se encontra. Uma vez que a progressão de suas aprendizagens seja garantida por meio de abordagens e materiais específicos para o ensino de Português como segunda língua para surdos e da Libras como língua de instrução, o aprendente surdo terá a possibilidade de desenvolver as competências necessárias para uma escrita mais fluente da língua portuguesa.

A noção de interlíngua deixa evidente o papel decisivo da primeira língua de sinais no processo de construção da segunda língua pelos aprendentes surdos.

Na prática:

Essa questão pode ser ilustrada com o exemplo dado pela professora Sueli Ramalho Segala, em sua participação no programa televisivo “Provocações”, em 2012, em que explica a diferença entre a estrutura das línguas de sinais e das línguas vocais.

Neste exemplo prático, Sueli utiliza a sentença “O gato comeu o rato” para explicar que a ordem canônica sujeito-verbo-objeto da língua portuguesa, nesse caso, não faz sentido para os surdos sinalizantes da Libras. A professora surda argumenta acerca da sintaxe espacial da Libras para mostrar que a estrutura da frase em Libras segue uma lógica visuoespacial. Assim, para que a informação expressa pela sentença “O gato comeu o rato” faça sentido em Libras, é necessário utilizar a ordem objeto-sujeito-verbo, como representado na figura abaixo.

Figura 9 - A estrutura frasal: português e libras

 

O exemplo acima não é um exemplo de interlíngua, mas nos permite visualizar uma das principais estratégias que o aprendente surdo lança mão no seu processo de apropriação da escrita em língua portuguesa, a de recorrer a sua primeira língua de sinais como referência para a sua produção escrita, bem como, nos possibilita elucidar um dos erros fossilizados mais comuns em sua escrita, a inadequação da ordem das palavras. Recorrer à primeira língua é um processo fundamental na apropriação de uma segunda língua, é a primeira língua que cria as condições para a apropriação da segunda (Giacobbe, 1990).

Besse e Porquier (1991) argumentam que a primeira língua é a “base linguageira”, bem como a “base cognitiva” do processo de apropriação da segunda língua.

Assim, podemos dizer que o aprendente surdo se apoia em sua primeira língua de sinais para se apropriar da leitura e da escrita em língua portuguesa. Por isso, parece-nos comum que, em estágios iniciais da apropriação da língua portuguesa escrita, o aprendente surdo realize uma tradução sistemática dos enunciados da Libras para o português escrito. Salles et al. (2004) já relatavam isso, argumentando que, há anos, em nosso país, a alfabetização de surdos em língua portuguesa reforça a fossilização de uma interlíngua que, de acordo com essas autoras “[...] apresenta a estrutura da língua de sinais com vocabulário de língua portuguesa” (p. 49).

Você já viu anteriormente, que os modelos cognitivistas da aprendizagem nos levam a considerar os surdos como aprendentes ativos na sua tentativa de apropriação da leitura e da escrita e que eles são os atores principais de sua aprendizagem. Mais um aspecto importante que você precisa conhecer na abordagem cognitivista é que a formulação de hipóteses é o processo cognitivo fundamental implicado na apropriação de uma segunda língua.

No caso dos aprendentes surdos, as hipóteses são feitas a partir do conhecimento que eles já construíram em Libras e sobre a Libras (ou em e sobre a sua primeira língua de sinais). Assim, podemos dizer que o aprendente escritor surdo elabora seus enunciados escritos com base em suas hipóteses sobre o funcionamento da língua portuguesa. Por isso, nesse processo é essencial o feedback do professor de Português como Segunda Língua para Surdos (PSLS) no que concerne à validade de suas hipóteses. Nessa perspectiva, o erro é considerado como uma testagem de hipóteses, como no exemplo da figura abaixo:

Figura 10 – Comentários avaliativos sobre a produção escrita de um aprendente escritor surdo

Fonte: Dias e Barbosa (2020, p. 15)

 

Observe que, nos primeiro e segundo parágrafos, o aprendente escritor surdo testou sua hipótese acerca do uso da preposição com:

  1. “Os homens não ter amor pelas com a mulher e eles matam.”;
  2. “Tem muita falta de respeito com a mulher.”;
  3. “Os homens que matam as mulheres todos os dias, não tem amor com e a mulher sofre a mulher tem medo sempre.”

No caso da prática de ensino de Português relatada por Dias e Barbosa (2020), cujo exemplo você viu acima, houve um momento para a análise e tratamento dos erros identificados na produção do aprendente escritor surdo, em que a professora apresentou um feedback de sua produção escrita por meio de comentários avaliativos e sugestões. Dessa forma, o aprendente escritor surdo teve a oportunidade de saber que as hipóteses de uso da preposição com que ele formulou não eram aceitáveis, pois não foram validadas pela professora. Para nós, a ausência de análise e tratamento dos erros dos aprendentes leitores-escritores surdo pelos professores ao longo das aulas se constitui como uma das causas principais do fenômeno de fossilização.

Para concluir, depois de tudo o que foi mostrado neste capítulo, esperamos que você tenha compreendido que o obstáculo maior à progressão das aprendizagens do aprendente surdo no processo de apropriação da leitura-escrita em língua portuguesa não é a surdez, mas a carência de formação especializada para o ensino de Português como segunda língua para surdos, a falta de clareza epistemológica e didático-pedagógica acerca do ensino-aprendizagem de Português e a precariedade de materiais didáticos com fundamentação didático-metodológica para o ensino da segunda língua nos processos de alfabetização e letramento de crianças surdas.