3.2. As práticas de alfabetização de crianças surdas

Atualmente, os maiores desafios para proporcionar práticas coerentes com a realidade dos estudantes surdos estão relacionados à formação de profissionais capacitados e que conheçam as várias singularidades envolvidas no processo de apropriação da escrita desses sujeitos. Fernandes (2006) destaca algumas atividades adotadas na alfabetização de crianças ouvintes e como elas seriam inviabilizadas nas aulas com sujeitos surdos. Observe a seguir:

Quadro 4: Alfabetização de crianças ouvintes e surdas

Práticas adotadas na alfabetização com crianças ouvintes Implicações para a aprendizagem de alunos surdos
Parte-se do conhecimento prévio da criança sobre a língua portuguesa, explorando-se a oralidade: narrativas, piadas, parlendas, trava-línguas, rimas. Não há conhecimento prévio internalizado; a criança não estrutura narrativas orais e desconhece o universo folclórico da oralidade.
O alfabeto é introduzido relacionando-se letras a palavras do universo da criança: nomes, objetos da sala de aula, brinquedos, frutas, etc.
Ex: A da abelha, B da bola, O do ovo…
Impossibilidade de estabelecer relações letra x som; a criança desconhece o léxico (vocabulário) da língua portuguesa, já que no ambiente familiar sua comunicação restringe-se a gestos naturais ou caseiros (na ausência da língua de sinais).
As sílabas iniciais ou finais das palavras são destacadas para a constituição da consciência fonológica e percepção que a palavra tem uma reorganização interna (letras e sílabas). A percepção de sílabas não ocorre já que a palavra é percebida por suas propriedades visuais (ortográficas) e não auditivas.
A leitura se processa de forma linear e sintética (da parte para o todo); ao pronunciar sequências silábicas a criança busca a relação entre as imagens acústicas internalizadas e a unidades de significado (palavras). A leitura se processa de forma simultânea e analítica (do todo para o todo); a palavra é vista como uma unidade compacta; na ausência de imagens acústicas que lhes confiram significados, as palavras são memorizadas mecanicamente, sem sentido.
Fonte: Fernandes (2006, p. 6)

 

Muitas das práticas pedagógicas elencadas acima e desenvolvidas com as crianças ouvintes, pautadas na sonoridade da língua, são aplicadas inadequadamente também com as crianças surdas. Dentre os problemas apontados pela autora, podemos destacar o conhecimento prévio e a relação entre som e escrita que é predominante na alfabetização de crianças surdas.

Ao longo do primeiro módulo, enfatizamos a importância da interação com pares surdos, das experiências compartilhadas em língua de sinais, da Literatura Surda e isso tem relação direta com a construção do conhecimento enciclopédico, da base que será explorada no processo de alfabetização. Desse modo, o professor parte do universo cultural e linguístico dos surdos e não de textos orais, de práticas que não contemplam as crianças surdas.

Um exemplo é o trabalho realizado com o alfabeto em sala de aula e a relação com imagens correspondentes: A de Abelha, B de Bola, C de Carro. Essa relação é estritamente construída por causa da fala e acontece diariamente no ensino de Português como língua materna para ouvintes, mas não contempla de forma plena os surdos.

Uma possibilidade, no caso dos surdos, é partir da configuração de mão para explorar a criação de sinais, como no exemplo abaixo, onde a configuração de mão apresentada é usada em vários sinais da Libras:

Além da necessidade de ter a língua de sinais na base da prática com a escrita, o ensino do Português como segunda língua envolve o trabalho com a função social, gramatical e lexical.

Aspectos funcionais: todo texto presta-se a uma função social (dirige-se a alguém, com uma intenção); seu sentido só pode ser apreendido se articulado à prática social que lhe deu origem, ao veículo no qual ele se apresenta (jornal, revista, outdoor, embalagem de um produto, etc.) e às intenções que revela (vender algo, informar sobre, questionar, fazer refletir, etc.).

Aspectos lexicais: as palavras só adquirem significado no contexto em que são veiculadas; as crianças surdas, em sua maioria, desconhecem mesmo o significado literal das palavras, quanto mais seu caráter polissêmico; portanto, há a necessidade de sistematização do vocabulário (léxico) implicado no texto e sua intertextualidade com leituras anteriores.

Aspectos gramaticais: aprender uma língua envolve conhecer sua gramática, ou seja, as regras de sua organização, as leis que permitem que seus usuários se entendam entre si; essas regras não são externas ao texto, mas são constituídas internamente. O que está em foco não é a gramática tradicional e suas regras e nomenclaturas, mas as regras que nos permitem construir enunciados compreensíveis na língua, independente de estarem ou não na norma padrão. Cada texto será um instrumento de investigação para a descoberta do funcionamento da língua portuguesa (Fernandes, 2006, p. 14)

Os aspectos mencionados por Fernandes (2006) possuem relação com as competências necessárias para que o aluno desenvolva a competência comunicativa.

E você sabe o que é competência comunicativa? Quando aprendemos uma língua, temos qual objetivo? Simplesmente aprender regras gramaticais e conhecer novas palavras? Não. O intuito é comunicar-se, é saber utilizar a língua nos mais variados contextos e situações específicas de comunicação, seja para fazer um pedido, enviar um e-mail, interagir com os amigos nas redes sociais, comprar um lanche, fazer uma reclamação, dentre várias outras circunstâncias.

Nesse sentido, o ensino de Português como segunda língua para surdos desde os anos iniciais deve ter como propósito o desenvolvimento da competência comunicativa, da capacidade desses sujeitos para produzir e compreender os mais variados tipos de textos de acordo com o contexto comunicativo. Para isso, é preciso mobilizar os conhecimentos relacionados à competência linguística, sociolinguística e pragmática.

 

As competências linguística, sociolinguística e pragmática são fundamentais para que o aluno consiga desenvolver a competência comunicativa. No entanto, o que se espera é que o ensino do Português não se limite, por exemplo, aos aspectos ligados à competência linguística. Observe a atividade abaixo:

Figura 17 - Exemplo de atividade

Fonte: Canva

Você consegue perceber o objetivo da atividade acima? Se trabalharmos somente com ela, exploraremos o léxico, o conhecimento de novas palavras. Também é possível trabalhar com questões de semântica, por conta da relação de significado entre as palavras. Entretanto, qual a relação com o uso social da língua? Em quais situações comunicativas podemos utilizar o conhecimento adquirido? Quando preconizamos o desenvolvimento da competência comunicativa precisamos pensar em práticas contextualizadas, promover o trabalho com textos autênticos e assim favorecer o letramento das crianças surdas.

Considerando que os surdos utilizam uma língua visual para conceituar o mundo e construir sua própria identidade, é comum ouvir que as práticas pedagógicas pensadas com crianças surdas devem ser visuais. Porém, o que realmente significa a visualidade na alfabetização e no letramento de crianças surdas?

Uma das autoras que discute o letramento visual é Lebedeff (2010). Para a autora é imprescindível que nós exploremos todo o potencial da visualidade a partir da interpretação das imagens que estão ao nosso redor com o detalhe que estas, devem ser escolhidas com uma finalidade pedagógica. Veja a seguir uma contribuição da autora:

Discutir então letramento para a surdez requer pensar em práticas culturais e sociais: pensar em como os surdos leem e interpretam o mundo a partir de suas singularidades linguísticas e culturais; pensar em como os surdos utilizam social e culturalmente a língua escrita. Por exemplo, pesquisas demonstram que as singularidades da surdez estão para além da língua, os surdos utilizam estratégias diferentes das dos ouvintes para o ensino de língua escrita e para o conto de histórias (LEBEDEFF, 2010, p. 179).

Sendo assim, podemos entender o letramento visual como a capacidade de compreender, interpretar e criar mensagens visuais de maneira crítica. Isso envolve a habilidade de compreender elementos visuais, como imagens, gráficos, vídeos, cores e formas, assim como o letramento comumente utilizado nas escolas envolve a habilidade de compreender e produzir o texto escrito nos mais variados contextos.

É preciso ressaltar que mesmo o letramento dito “não visual” tem como característica de alguns de seus gêneros a utilização de imagens como a charge e as histórias em quadrinhos, por exemplo.

Bom, é bastante comum pensar que elaborar um material com uma sequência de imagens é suficiente para explicar conceitos aos alunos surdos por si só, pela sua sensibilidade visual. No entanto, é preciso aprender a interpretar tais imagens e desenvolver estratégias de interpretação também nos alunos, a fim de evitar que as imagens sejam apenas um ornamento no texto escrito.

Para além das figuras, podemos apresentar os conceitos principais a serem trabalhados em formatos diferentes, brincando com a disposição das palavras ao criar imagens com elas.

Em uma interessante pesquisa realizada com professores surdos, Lebedeff (2010) explorou o uso de mapas com diferentes estruturas para a organização de conceitos e ideias. A autora identificou que ao elaborar os gráficos propostos, os professores surdos participantes sempre traziam aspectos da história, da cultura e da língua dos surdos para mesclar aos conceitos chave abordados. Durante as oficinas a autora quis desenvolver a compreensão do letramento visual como uma possibilidade de reorganizar o texto “através de estratégias visuais para que possa ser mais bem compreendido” (Lebedeff, 2010, p. 184).

Como forma de estruturar os textos escritos, Lebedeff (2010) propôs a utilização dos seguintes tipos de organização visual para tratar de diferentes assuntos presentes no cotidiano dos alunos de maneira relacionada aos conteúdos a serem estudados:

  1. gráfico em árvore: é uma representação visual que exibe a estrutura hierárquica entre os tópicos do assunto a ser discutido. O tópico principal é o tronco da árvore e os demais são as suas ramificações.
  2. gráfico em teia: também é conhecido como brainstorm, mapa conceitual, ou mapa mental. Com ele é possível visualizar as relações entre diferentes conceitos ou ideias de maneira não linear.
  3. tabela: são uma forma eficiente de apresentar dados de maneira organizada e facilitam a busca, comparação e análise de informações.
  4. mapa de história: foi utilizado pela autora com a intenção de organizar as ideias para compor ou analisar uma história. São exemplos de elementos: cenário, hora, local, personagens, problema, “o que aconteceu” (desenvolvimento) e conclusão.
  5. histórias em quadrinhos: são uma forma de expressão que combina texto e imagens para contar uma história. Possui balões de diálogo, usa onomatopeias, narrativas visuais, ou seja, apenas imagens para contar uma sequência de acontecimentos (Lebedeff, 2010).

Você pode ver diferentes exemplos de estratégias visuais no material deste curso! Usamos imagens para exemplificar o recorte de um contexto da vida real, tabelas, mapas, gráficos, entre outros. É importante lembrar que as imagens por si só não são suficientes para ocorrer a aprendizagem: nós professores, como sujeitos mais experientes, devemos oferecer os subsídios que as crianças precisam para construir conhecimento com base nos saberes científicos.